A Emenda Constitucional nº 103/2019 trouxe mudanças significativas ao sistema previdenciário brasileiro, especialmente nas regras de concessão da aposentadoria especial. Entre as alterações, a uniformização da idade mínima para homens e mulheres expostas a agentes nocivos em seu ambiente de trabalho o que gerou intensos debates sobre a constitucionalidade da medida. Essa equiparação desconsidera desigualdades materiais que sempre justificaram uma diferenciação de gênero no Direito Previdenciário, resultando em um grave retrocesso em direitos historicamente consolidados.
Essa problemática foi o cerne do meu artigo "Aposentadoria Especial da Mulher, Há Isonomia? Reflexões sobre a Constitucionalidade no Desenho Imposto pela EC 103/2019", publicado no livro Novas Gramáticas para a Proteção Social: Direito Previdenciário, tecnologia e vulnerabilidade. pela IEPREV Editora em 2024. Nele, defendo que “a equiparação etária exige conquistas históricas de proteção previdenciária, frente aos princípios constitucionais de igualdade material, dignidade da pessoa humana e a colocação ao retrocesso”.
Recentemente, a decisão cautelar proferida na ADI 7.727/DF reacendeu a esperança nesse debate, ao suspender a aplicação de dispositivos que unificavam critérios para policiais civis e federais. Embora limitada em seu alcance, esta decisão trouxe à tona uma discussão sobre os impactos da reforma previdenciária e a possibilidade de seu julgamento definitivo corrigir as distorções provocadas pela EC nº 103/2019.
Ora, princípio da isonomia, consagrado no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, mas requer uma interpretação que vá além da igualdade formal. O conceito de isonomia material exige o reconhecimento e o enfrentamento das desigualdades fáticas, garantindo um tratamento diferenciado aos desiguais para que o alcance seja um equilíbrio justo.
O Ministro Flávio Dino, ao relatar a ADI 7.727/DF, enfatizou que “o vetor da igualdade material exige tratamento desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades”. Essa lógica fundamentou a diferenciação de gênero nos critérios previdenciários, consolidada no ordenamento jurídico brasileiro e especialmente relevante no contexto da contratação especial.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, a redução de cinco anos nos critérios de idade e tempo de contribuição para as mulheres foi justificada pela realidade da dupla jornada de trabalho, pela discriminação no mercado laboral e pelas responsabilidades desproporcionais atribuídas às mulheres. No entanto, a EC nº 103/2019, ao ignorar essas condições, rompeu com essa lógica compensatória, desrespeitando um princípio estruturante da previdência social brasileira.
A Decisão da ADI 7.727/DF: Um Marco na Defesa da Proteção Previdenciária
A decisão cautelar do STF na ADI 7.727/DF declarou a inconstitucionalidade parcial da EC nº 103/2019 no que diz respeito à uniformização de critérios para policiais civis e federais. A medida suspendeu a eficácia das expressões “para ambos os sexos” nos artigos 5º e 10 da Emenda, determinando que, enquanto não houver legislação adequada, será aplicada a redução de três anos nos requisitos para as mulheres policiais.
Essa decisão reafirma a lógica constitucional de proteção diferenciada, indispensável para alcançar a igualdade material. O Ministro Flávio Dino, em seu voto, destacou que a uniformização de critérios exige a justiça social ao ignorar a realidade desigual enfrentada pelas mulheres em condições laborais adversárias.
Essa posição é consistente com o que venho defender: a unificação de critérios entre homens e mulheres na aposentadoria especial, não apenas desconsidera desigualdades históricas, mas também viola os princípios constitucionais que sustentam a segurança social. Embora limitada às carreiras policiais, a decisão estabelece uma base sólida que poderemos utilizar para questionar a uniformização de critérios em outras categorias previdenciárias, como as vinculadas ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Desigualdades no Mercado de Trabalho e os Reflexos Previdenciários
A equiparação etária desconsidera desigualdades estruturais enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho. Dados do DIEESE e da ONU Mulheres reforçam que a presença feminina no mercado formal é prejudicada por múltiplas barreiras:
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Participação desigual : As mulheres representam 64,6% das pessoas fora da força de trabalho, muitas afastadas devido à sobrecarga de tarefas domésticas e responsabilidades familiares.
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Menores remunerações : Mesmo com maior escolaridade média, as mulheres recebem 20,5% a menos que os homens.
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Desafios após a maternidade : Cerca de 40% das mulheres enfrentam dificuldades para retornar ao mercado formal após a maternidade, sendo frequentemente relegadas a empregos informais. E, destas, 20% deixam o mercado de trabalho um ano após retornar da licença.
Ainda como exemplo de tais diferenças a questão do trabalho doméstico não remunerado, realizado predominantemente por mulheres, é central para compreender as desigualdades enfrentadas por elas na previdência. O professor José Antônio Savaris, em decisão proferida no processo nº 5078719-73.2021.4.04.7000/PR, ressaltou que “o trabalho doméstico não remunerado recai predominantemente sobre as mulheres, comprometendo sua participação plena no mercado de trabalho”.
Essa sobrecarga impede muitas mulheres de cumprir os critérios rígidos de idade e tempo de contribuição tributária pela EC nº 103/2019. O reconhecimento dessa realidade deve ser uma proposta na análise das regras previdenciárias, pois é indispensável para garantir que as mulheres não sejam duplamente penalizadas – primeiro, pela invisibilidade de seu trabalho doméstico, e depois, por regras que ignoram essas culpas.
Neste contexto, os fatores tornam desproporcional a exigência de idades mínimas iguais para homens e mulheres. Como o Ministro Flávio Dino, “não se pode desconsiderar que as mulheres acumulam, além do trabalho formal, responsabilidades adicionais no âmbito doméstico, o que comprometem a sua capacidade de atingir as mesmas parâmetros afirmados de idade e contribuição que os homens”.
Logo, reconhecer a desigualdade estrutural não é apenas uma questão de justiça social, mas um imperativo constitucional. O Direito Previdenciário deve ser moldado para corresponder às especificidades impostas às mulheres, garantindo que o sistema cumpra sua função de proteção.
Visando garantir a correta interpretação de tal sistema, destaca-se a publicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero , de 2021, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e a Resolução CNJ nº 492, de 17 de março de 2023 , que oferece diretrizes claras para promover a igualdade de gênero no Direito. Ambos reconhecem que as desigualdades impostas pelo patriarcado e pelo machismo devem ser enfrentadas com medidas concretas que asseguram uma isonomia material.
No contexto previdenciário, essas diretrizes tornam-se indispensáveis, pois reafirmam que decisões e normas devem cumprir as especificidades femininas. Um sistema previdenciário sensível às questões de gênero não apenas corrige desigualdades estruturais, mas também fortalece a justiça social ao garantir a proteção adequada aos trabalhadores, respeitando as realidades históricas e sociais que afetam.
Ademais a vedação ao retrocesso social é um princípio constitucional amplamente reconhecido pelo STF, que protege os direitos sociais já consolidados. No caso da aposentadoria especial, a uniformização de critérios pela EC nº 103/2019 representa uma violação direta a esse princípio, ao desconsiderar conquistas normativas que garantem proteção diferenciada para mulheres.
Anteriormente como o RE 636.553/RS (Tema 709), o STF já afirmou que “direitos sociais não podem ser reduzidos ou suprimidos sob justificativas meramente econômicas”. Esse entendimento é especialmente relevante no contexto da previdência, onde os princípios constitucionais de equidade e justiça social devem prevalecer sobre investimentos financeiros ou atuantes.
Importante destacar que o retrocesso imposto pela reforma previdenciária não compromete apenas as mulheres; ele desafia a própria ideia de justiça social que fundamenta o sistema de segurança no Brasil.
O Papel do Congresso Nacional e a Urgência de Regulamentação
Embora o STF tenha um papel crucial na garantia dos direitos fundamentais, a correção definitiva das distorções introduzidas pela EC nº 103/2019 depende do Congresso Nacional. A inércia legislativa em critérios regulamentares que respeitem as investigações femininas é incompatível com o compromisso constitucional de proteção social.
O artigo 5º, §2º, da Constituição reforça que os direitos fundamentais têm eficácia plena e imediata, impondo ao legislador a obrigação de garantir sua implementação. A missão legislativa nesse sentido agrava o retrocesso social e perpetua as desigualdades.
Desta feita, cito trecho do dispositivo da decisão do voto condutor, que:
“medida cautelar, ad referendum do Plenário, para suspender a eficácia das expressões “para ambos os sexos”, contidas nos arts. 5º, caput, e 10, § 2º, I, da EC nº 103/2019, bem como para determinar que o Congresso Nacional corrija a inconstitucionalidade mediante a edição da norma adequada. Aplicar-se-á, por simetria, até que o novel regramento constitucional entre em vigor, a diferenciação contida no art. 40, III, da Lei Maior, na redação dada pela EC nº 103/2019, ou seja, a “regra geral” de 3 (três) anos de redução para todos os prazos que se refiram a mulheres policiais civis e federais.Acresço que o Congresso Nacional, ao legislar para corrigir a inconstitucionalidade quanto às mulheres, deve adotar a diferenciação que considerar cabível em face da discricionariedade legislativa.”
Ou seja, cabe ao Congresso o dever de corrigir essa mudança, adotando normas que respeitem as desigualdades estruturais enfrentadas pelas mulheres. A regulamentação não é apenas um ato de discriminação legislativa; é uma obrigação constitucional que reflete a necessidade de promover a justiça social e reparar as omissões que aprofundam a exclusão feminina no sistema previdenciário.
Conclusão
O julgamento definitivo da ADI 7.727/DF representa muito mais que a resolução de um conflito jurídico sobre a aplicação de critérios diferenciados para policiais civis e federais. Ele simboliza um momento crucial para reafirmar o compromisso do Supremo Tribunal Federal com a proteção social, a igualdade material e a colocação ao retrocesso social, que são pilares do Estado Democrático de Direito.
A uniformização dos critérios de idade mínima pela EC nº 103/2019, embora apresente sob a justificativa de modernização do sistema previdenciário, compromete a função protetora de aposentadoria especial ao desconsiderar as desigualdades estruturais que afetam as mulheres no mercado de trabalho e na sociedade. Essas desigualdades, amplamente documentadas por dados estatísticos e selecionadas por doutrinadores e decisões judiciais, exigem um tratamento previdenciário diferenciado, sob pena de injustiças perpétuas e desigualdades sociais profundas.
Não se pode ignorar que as mulheres enfrentam múltiplos desafios, como a sobrecarga com trabalho doméstico não remunerado, dificuldades inferiores e maior vulnerabilidade ao desemprego e à informalidade. Essas condições tornam inviável a aplicação de critérios uniformes, que desconsideram as especificidades femininas. Além disso, a ausência de diferenciação de gênero compromete o próprio pacto constitucional de proteção social, afastando-se da lógica normativa que sempre orientou o Direito Previdenciário no Brasil.
O STF, ao decidir pela suspensão provisória dos dispositivos da EC nº 103/2019 na ADI 7.727/DF, deu um passo significativo, mas ainda insuficiente. É imperativo que o julgamento definitivo consolide a tese de que a igualdade formal não pode ser imposta em detrimento da igualdade material. Esse reconhecimento, no entanto, não será suficiente se o Congresso Nacional permanecer inerte diante da necessidade de regulamentos dos critérios de entrega especiais para todas as categorias, respeitando os específicos de gênero.
A correção desse retrocesso não é apenas uma obrigação jurídica, mas também uma urgência social. A perpetuação de regras que ignoram as desigualdades estruturais não apenas viola os princípios constitucionais, mas também aprofunda a exclusão das mulheres, limitando seu acesso aos direitos fundamentais. O Congresso Nacional deve agir com celeridade para normas regulamentares que garantam a justiça social, sob pena de comprometer a recompensa do sistema previdenciário e do próprio pacto de solidariedade que o sustenta.
Como destacado ao longo deste texto, a proteção diferenciada para as mulheres não é um privilégio, mas uma resposta necessária às condições desiguais impostas pela sociedade. O STF, como guardião da Constituição, tem a oportunidade de reafirmar esse compromisso no julgamento definitivo da ADI 7.727/DF. Isso porque mais do que uma decisão jurídica, espera-se um posicionamento que reverbere no tecido social, promovendo um sistema previdenciário mais justo e equitativo, que respeite as conquistas históricas e as necessidades específicas das mulheres brasileiras.

Autora: Maytê Feliciano
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