IEPREV - A Inconstitucionalidade da Pena de Cassação de Aposentadoria

Bem-vindo Visitante

A Inconstitucionalidade da Pena de Cassação de Aposentadoria

 

 


 

A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENA DE CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA


 O regime jurídico estatutário fixado para os servidores públicos pela Constituição Federal de 1988 introduziu a necessidade de definição legal dos direitos, prerrogativas, vantagens e deveres dos servidores, permitindo aos Entes Federados a regulamentação, por intermédio de Lei, da relação jurídica servidor-Estado.

 

 Os diplomas legais editados trouxeram, em seus textos, a possibilidade de sanção ao servidor após sua aposentadoria pelo cometimento de falta considerada grave, por intermédio da pena denominada cassação de aposentadoria.

 

 A cassação de aposentadoria é penalidade assemelhada à demissão, por acarretar a exclusão do infrator do quadro dos inativos, e consequentemente, a cessação do pagamento de seus proventos.[1]

 

 Também é possível dizer que a cassação de aposentadoria consiste na extinção do vínculo jurídico mantido com o servidor jurídico aposentado ou em disponibilidade como punição por infração por ele praticada quando em atividade, a que fosse cominada sanção de demissão.[2]

 

 Portanto, a pena de cassação de aposentadoria pressupõe o cometimento de uma falta grave durante o exercício de suas atividades, ensejadora da demissão ao servidor ativo e que venha a ser aplicada a este somente após a sua aposentadoria, sempre com o objetivo de extinguir a relação jurídica existente entre o Estado e o servidor.

 

A pena de cassação de aposentadoria, nos contornos em que é colocada hoje, toma por base os conceitos jurídicos existentes nos anos noventa, período em que foram editados os Estatutos de Servidores, alimentados pelos institutos constantes do ordenamento constitucional de 1967, onde sempre se pressupôs que a relação jurídica Estado-servidor seria perpétua.

 

Além disso, tanto o regime de 1967 quanto o regime da redação original da atual Constituição entendiam a aposentadoria como uma benesse concedida aos servidores pelo Estado, em razão de este ter alcançado determinado tempo de serviço prestado.

 

Prova deste entendimento consiste no fato de que até então os servidores ao se aposentar poderiam inclusive usufruir de valores pecuniários que não integraram sua remuneração quando em atividade, como, por exemplo, o Adicional de Final de Carreira.

 

Entretanto, em 1998, com o advento da Emenda Constitucional n. 20, o benefício de aposentadoria perdeu a característica de simples mudança da situação funcional de ativo para inativo, resgatando a característica inerente a qualquer benefício de natureza previdenciária, qual seja, o recolhimento de contribuições para sua efetivação.

 

Posteriormente com o advento da Emenda Constitucional n. 41/03, impôs-se a obrigatoriedade de os Estados e Municípios instituírem contribuições previdenciárias a serem cobradas de seus servidores para o custeio de seu sistema previdenciário.

 

As mudanças promovidas no texto constitucional, afastaram a possibilidade de a aposentadoria constituir-se em prêmio concedido ao servidor, tornando-a um benefício decorrente de um pagamento realizado previamente por este.                       

      

Assim, devolve-se à aposentadoria do servidor o caráter de beneficio previdenciário, já que a proteção previdenciária exige a contribuição direta do protegido no custeio de suas ações como condição necessária para a qualificação do direito adquirido a essa proteção.[3]

 

A previdência tem como objetivo a proteção dos eventos previstos no art. 201 da Constituição brasileira, a saber: doença, invalidez, morte, idade, reclusão, proteção à maternidade, proteção contra desemprego involuntário, encargos familiares e acidente do trabalho. A previdência social pressupõe o pagamento de contribuições e riscos predeterminados (com determinada previsão financeira para cobri-los).[4]

 

Daí o entendimento de que a previdência se caracteriza como um seguro sui generis, uma vez que mesmo possuindo regramentos constitucionais e legais, pressupõe filiação obrigatória e o pagamento de contribuições para o gozo do benefício.          

 

Então, conclui-se que a natureza premial das aposentadorias, existente no ordenamento jurídico anterior, padece diante da nova realidade jurídica consistente na obrigatoriedade do pagamento de contribuições, fundamentada no caput do artigo 40 (redação dada pela EC n. 20/98) e § 1°, do artigo 149 (redação dada pela EC n. 41/03), ambos da Carta Maior.

 

Portanto, em termos previdenciários, não prevalece mais a relação jurídica estatutária perpétua entre o servidor e o Estado, mas sim o regime contributivo, afastando assim qualquer possibilidade de ascensão do Estado sobre o servidor após a sua aposentadoria, sob o argumento de responsabilização de falta cometida durante o exercício das atividades laborais. 

 

Na verdade o ordenamento constitucional reformulado segmentou a relação jurídica Estado-servidor em duas: a primeira estatutária no que tange a maioria de seus direitos, deveres e vantagens e a segunda de seguro sui generis quando nos referimos às regras relativas aos benefícios previdenciários.

 

 A incompatibilidade das legislações dos Entes federados que preveem a pena de cassação de aposentadoria com o texto constitucional superveniente, leva segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal[5], à sua revogação, senão vejamos:

 

EMENTA: I. Ação direta de inconstitucionalidade: art. 2º, inciso IV, alínea c, da L. est. 12.755, de 22 de março de 2005, do Estado de Pernambuco, que estabelece a vinculação da Defensoria Pública estadual à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos: violação do art. 134, § 2º, da Constituição Federal, com a redação da EC 45/04: inconstitucionalidade declarada. 1. A EC 45/04 outorgou expressamente autonomia funcional e administrativa às defensorias públicas estaduais, além da iniciativa para a propositura de seus orçamentos (art. 134, § 2º): donde, ser inconstitucional a norma local que estabelece a vinculação da Defensoria Pública a Secretaria de Estado. 2. A norma de autonomia inscrita no art. 134, § 2º, da Constituição Federal pela EC 45/04 é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, dado ser a Defensoria Pública um instrumento de efetivação dos direitos humanos. II. Defensoria Pública: vinculação à Secretaria de Justiça, por força da LC est (PE) 20/98: revogação, dada a incompatibilidade com o novo texto constitucional 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal - malgrado o dissenso do Relator - que a antinomia entre norma ordinária anterior e a Constituição superveniente se resolve em mera revogação da primeira, a cuja declaração não se presta a ação direta. 2. O mesmo raciocínio é aplicado quando, por força de emenda à Constituição, a lei ordinária ou complementar anterior se torna incompatível com o texto constitucional modificado: precedentes.

 

 Então ao se substituir a figura do prêmio pela figura da contribuição, modificou-se a natureza constitucional do benefício de aposentadoria.

 

Tal modificação conceitual implica na mudança do conteúdo das normas editadas sob a égide do regime anterior e impede a manutenção da penalidade de cassação de aposentadoria, por absoluta incompatibilidade com a nova natureza constitucional das aposentadorias.

 

Contudo, o próprio Supremo Tribunal Federal não reconhece tal inconstitucionalidade, conforme se depreende dos julgados contidos nos AI-ED 504188. RMS 24.557, MS n. 23.299 eMS-AgR 23219, dentre outros.

 

As decisões proferidas nos autos supramencionados baseiam-se em entendimento firmado no Mandado de Segurança n. 21.948-3, cujo teor é o seguinte:

 

EMENTA: - MANDADO DE SEGURANÇA. DEMISSAO. PROCURADOR AUTARQUICO. 2. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DOS INCISOS III E IV DO ART. 127, DA LEI N. 8112/1990, AO ESTABELECEREM ENTRE AS PENALIDADES DISCIPLINARES A DEMISSAO E A CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA OU DISPONIBILIDADE. SUA IMPROCEDENCIA. A RUPTURA DO VINCULO FUNCIONAL E PREVISTA NO ART. 41, PAR. 1. DA CONSTITUIÇÃO. HOUVE, NO CASO, PROCESSOADMINISTRATIVO, ONDE ASSEGURADA AO IMPETRANTE AMPLA DEFESA. A DEMISSAO DECRETOU-SE POR VALER-SE O IMPETRANTE DO CARGO, EM DETRIMENTO DA DIGNIDADE DA FUNÇÃO PÚBLICA E DESIDIA. LEI N. 8.112/1990, ART. 117, INCISOS IX E XI. 3. NÃO CABE, EM MANDADO DE SEGURANÇA, PENETRAR NA INTIMIDADE DAS PROVAS E FATOS DE QUE RESULTOU O PROCESSO DISCIPLINAR. 4. NÃO PODE PROSPERAR, AQUI, CONTRA A DEMISSAO, A ALEGAÇÃO DE POSSUIR O SERVIDOR MAIS DE TRINTA E SETE ANOS DE SERVIÇO PÚBLICO. A DEMISSAO, NO CASO, DECORRE DA APURAÇÃO DE ILICITO DISCIPLINAR PERPETRADO PELO FUNCIONÁRIO PÚBLICO, NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES. NÃO E, EM CONSEQUENCIA, INVOCAVEL O FATO DE JA POSSUIR TEMPO DE SERVIÇO PÚBLICO SUFICIENTE A APOSENTADORIA. A LEI PREVE, INCLUSIVE, A PENA DE CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA, APLICAVEL AO SERVIDOR JA INATIVO, SE RESULTAR APURADO QUE PRATICOU ILICITO DISCIPLINAR GRAVE, EM ATIVIDADE. 5. AUTONOMIA DAS INSTANCIAS DISCIPLINAR E PENAL. 6. MANDADO DE SEGURANÇA INDEFERIDO.[6]

 

 Ocorre que o referido julgamento se deu em setembro de 1994, portanto, antes das modificações constitucionais promovidas em 1998 e 2003, quando a aposentadoria ainda possuía um caráter premial.

 

Desta forma não atacou efetivamente a questão relativa à mudança da natureza do benefício de aposentadoria, já que está ocorreu, conforme já mencionado, posteriormente à proferição da decisão utilizada como precedente.

 

 Ora, no atual sistema contributivo de Regime Próprio, o aposentado não mais é um servidor público. Ao se aposentar, há vacância do cargo e não se poderia mais romper um vínculo funcional não mais existente, através da cassação de aposentadoria, em razão de mau serviço prestado. Preenchidos os requisitos de fruição do benefício em um sistema contributivo, a aposentadoria não pode ser cassada por motivo relacionado a atos de serviço (por exemplo, desídia), mas somente se houver vício no preenchimento dos pressupostos de aposentação, como é o caso de fraude em contagem de serviço. Da mesma forma com que no regime do INSS, se um empregado preencher os pressupostos para aposentadoria, tem direito a ela e a má qualidade de seu trabalho na empresa não pode ser motivo para desconstituição do ato previdenciário, não se pode aplicar a sanção de cassação de aposentadoria nos Regimes Próprios, instituto que não teria sido recepcionado pelas emendas constitucionais.[7]

 

 Ressalte-se, por fim, que o reconhecimento da inconstitucionalidade da pena de cassação de aposentadoria jamais pode servir como estímulo a impunidade do servidor por um ato ilícito cometido no exercício da atividade.

 

Isto porque, existem no âmbito da responsabilidade administrativa do servidor outras penalidades que podem ser impostas aos aposentados, tais como as penas pecuniárias.

 

Além disso, também pode este ser sancionado no âmbito penal ou mesmo no civil de acordo com a gravidade da conduta praticada pelo ex-servidor quando em atividade.

 

Assim sendo, há de se concluir que a pena de cassação de aposentadoria não encontra amparo no ordenamento constitucional pátrio vigente, fato este que não impede a responsabilização na esfera civil ou penal do ex-servidor.

 

 

Bruno Sá Freire Martins, advogado, professor universitário e de pós-graduação, servidor público do Estado de Mato Grosso e autor do livro DIREITO CONSTITUCIONAL PREVIDENCIÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO, editora LTr.

 

 


[1] MEIRELLES, Hely Lopes. DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO. 26ª edição. Ed. Malheiros. Página: 425.

[2] FILHO, Marçal Justen. CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO. 2ª EDIÇÃO. Ed. Saraiva. Página: 687.

[3] MARTINS, Bruno Sá Freire. DIREITO CONSTITUCIONAL PREVIDENCIÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO. Editora LTr. Página: 26.

[4] BRIGUET, Magadar Rosália Costa,;VICTORINO, Maria Cristina Lopes; JÚNIOR, Miguel Horvath. PREVIDÊNCIA SOCIAL – Aspectos Práticos e Doutrinários dos Regimes Jurídicos Próprios. Editora Atlas. Página: 04.

[5] ADI 3569/PE. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Tribunal Pleno. J. 02/04/2207

[6] MS 21.948. Rel. Min. Néri da Silveira. Pleno. J. 29/09/94.

[7] TAVARES, Marcelo Leonardo. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. 10ª edição. Editora Lumen Juris. Página: 609.