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Acumulação de proventos e vencimentos no serviço público

 


ACUMULAÇÃO DE PROVENTOS E VENCIMENTOS NO SERVIÇO PÚBLICO

 

João Celso Neto

Advogado em Brasília


 

Um das questões mais comum e frequentemente discutidas e controvertidas diz respeito à acumulação de aposentadorias e, em particular, de proventos da inatividade com os vencimentos do exercício de cargo público na ativa.

 

Com a Lei nº 1.711, de 1952, surgiu o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, de onde eternizou-se a expressão “estatutário”. Com o tempo, a palavra “funcionário” passou a ser usada também para celetistas, em vez da (a meu ver) escorreita “empregado”.

 

A partir dos anos sessenta, principalmente, tornou-se comum existirem, na mesma repartição, estatutários e celetistas ou extranumerários, até que a Constituição Federal de 1988 definiu que somente poderia existir um regime, o chamado regime jurídico único (RJU ) – em cada esfera de competência.

 

Na administração pública federal direta (incluídas as autarquias, apesar de constituir a  administração pública indireta), desde dezembro de 1990, vige a Lei nº. 8.112 que revogou a legislação anterior e, ex-vi do art. 243, transformou os então celetistas em servidores públicos “estatutários”.

 

Quanto a isso, não resta mais qualquer dúvida ou divergência, pois já pacificada a questão.

 

O Decreto-lei 200, em 1967, definira, dentre as entidades da administração pública indireta as autarquias (“o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada”) e as fundações públicas (“entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes” -  incluído pela Lei nº 7.596, de 1987), ao lado das empresas públicas e das sociedade de economia mista. Estas duas últimas, tal como as fundações públicas, são entidades dotadas de personalidade de direito privado, o que lhes permite contratar empregados pela CLT.

 

Entretanto, a CF/88, em seu artigo 37, parece que acabou por trazer certa confusão, ao se referir genericamente a “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

 

Aquele artigo 37 tem – até a EC 42 – 22 incisos e 12 parágrafos (alguns com incisos próprios), dando a entender em muitos dispositivos que quem quer que trabalhe “para o governo” (ainda que nas sociedades de economia mista ou empresas públicas) é  “servidor público” – e assim esses empregados são expressamente chamados em alguns desses dispositivos.

 

Porém não se discute que as sociedades de economia mista e as empresa públicas têm personalidade de direito privado, enquanto as autarquias têm a de direito público. Com isso, estas têm servidores públicos regidos pelo dito RJU  (“estatutários”) e aquelas duas anteriores têm empregados celetistas.


 

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”

(redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998, embora, no essencial, pouco alterou da redação original: “A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte:”)

 

Cada UF e cada Município tem a liberdade de estabelecer seu regime jurídico, desde que seja único. A União adotou a Lei  nº 8.112/90. Todos s Estados da Federação e o Distrito Federal têm cada qual seu RJU. E uns poucos Municípios também adotaram um RJU, conquanto a maioria deles haja estabelecido que teriam “empregados” públicos, celetistas.

 

Qual a grande e significativa diferença ou importância? Os celetistas contribuem para o INSS, para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), enquanto os que adotam RJU têm Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), sendo seus servidores contribuintes para a entidade específica (os institutos de previdência estaduais ou municipais). No caso da União, é o Tesouro Nacional que cumpre o papel.

 

Assim, haveria “servidores públicos” – os das sociedades de economia mista e das empresas públicas – que se aposentam pelo INSS (RGPS) e “servidores públicos” – os da administração direta e das autarquias – que se aposentam pelo erário ou pelos IPs (Iperj, Ipesp, Ipemg, etc.).

 

Contudo, as diferenças não param aí. Enquanto uns têm sua situação previdenciária regida pelo artigo 201 da CF/88 (os celetistas), os outros (os dos RJUs) têm sua situação conforme dispõe o artigo 40 da Carta Magna.

 

Alguns requisitos e critérios são comuns ou bem semelhantes, mas há diferenças que dão o que pensar.

 

O celetista não se submete às exigências de idade mínima, nem de tempo mínimo no serviço público, na carreira ou no cargo. E, por exemplo, desde 1964 (pelo menos), têm direito a um benefício chamado “aposentadoria especial” que ainda não tem equivalente para os “estatutários” (a CF/88 exige uma lei complementar que tarda a sair. E que, ao definir “os requisitos e critérios diferenciados”, eles podem ser iguais ou diferentes do que se requer e exige dos celetistas, na Lei nº 8.213/91)

 

Outra diferença conhecida é que os servidores públicos (RJU) inativos continuam contribuindo para previdência, o que não acontece com os celetistas aposentados pelo INSS, que contribuíram para o RGPS.

 

Mais outra diferença fundamental: o celetista, ao se aposentar voluntariamente, pode manter seu vínculo trabalhista anterior, enquanto a aposentadoria dos regidos pelo RJU abre vaga. Ou seja, quem se aposenta no serviço público propriamente dito não pode continuar na ativa, salvo se para ocupar cargo em comissão de livre nomeação e exoneração.

 

Porém o aspecto mais interessante é mesmo no tocante à (im)possibilidade de acumular dois cargos públicos (voltar ao serviço público, via concurso, após dele se aposentar) e, tanto quanto ou mais, a de cumulação de proventos com vencimentos.

 

Os doutrinadores mais renomados têm posições antagônicas em vários pontos. Há os que sustentam que receber proventos por haver exercido cargo público (uma vez aposentado) não impede que venha a exercer cargo público remunerado fazendo jus aos respectivos vencimentos. Outros afirmam que a CF (artigo 37, XVI e XVII) proíbe expressamente a possibilidade de um aposentado por um dos regimes de previdência (RGPS ou RPPS) voltar à ativa pelo mesmo ou por outro dos regimes de previdência social. Nem mesmo para trabalhar como celetista em uma sociedade de economia mista ou empresa pública.

 

“XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:

a) a de dois cargos de professor; (incluída pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; (incluída pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”; (redação dada pela Emenda Constitucional nº 34, de 2001).

 

“XVII - a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público;” (redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

 

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a questão ao julgar o RE 163.204/SP, e decidiu (Pleno, em 09/11/1994) por 9 a 1 que, em suma, somente é lícita a cumulação de cargos públicos que fosse permitida na atividade – aquelas três exceções: dois cargos de professor ou na área da saúde ou um de professor e outro de natureza técnica ou científica – ainda que um fosse pelo RGPS e outro por um RPPS.

 

O inteiro teor daquela decisão merece uma leitura e várias releituras. Constam ali nove votos, alguns mais extensos que outros, que totalizam aproximadamente umas setenta páginas.

 

E, deduz-se de uma leitura atenta que a vedação também se estenderia a vínculos de esferas diferentes. Em rigor, o servidor público aposentado na esfera estadual, por exemplo, não poderia voltar à ativa no serviço público federal, ou vice-versa. A menos que opte pela remuneração de um deles. Isto é, a vedação é principalmente quanto a acumular os proventos com os vencimentos ou salários. Inclusive, pois (art. 37, XVII), nas sociedades de economia mista e ou empresas públicas.

 

Também parece tormentosa a conceituação do que seja cargo “técnico ou científico” aludido nas exceções do inciso XVI, b). Sempre sustentei que deveria ser algo ligado á profissão de nível superior que guardasse correlação com o outro cargo público ocupado.

 

Já escrevi que um médico, por melhor músico que seja, não poderia acumular um cargo público de médico com outro de professor de música, composição ou regência; que um advogado, por mais que domine uma língua estrangeira, não pode acumular seu cargo público na área jurídica com outro cargo público de professor daquele idioma; que um engenheiro, por maior que seja sua intelectualidade, se for engenheiro do Estado, não pode acumular esse cargo com outro público de professor na área da Literatura; etc.

 

Minha “lógica” baseava-se em que o permissivo legal seria uma autorização para que o profissional transmitisse sua experiência para as futuras gerações, ensinando aquilo que aprendera na sua área (o lógico seria que um profissional da área técnica ou científica pudesse ser, também, professor naquela sua especialidade; não que um já professor se tornasse também ocupante de cargo público técnico ou científico).

 

E havia o respaldo para tal entendimento nas redações dadas nas Constituições anteriores, como:

 

CF/46, art. 185:     “É vedada a acumulação de quaisquer cargos, exceto a prevista no art. 96, nº I, e a dois cargos de magistério ou a de um destes com outro técnico ou científico, CONTANTO QUE HAJA CORRELAÇÃO DE MATÉRIAS e compatibilidade de horário” - destaquei

 

CF/67, art. 97:       “É vedada a acumulação remunerada, exceto:

...

III – a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;

                              ...

§ 1º. Em qualquer dos casos, a acumulação somente é permitida quando haja CORRELAÇÃO DE MATÉRIAS e compatibilidade de horários.”

 

EC 01/69, art. 99: “É vedada a acumulação remunerada de cargos e funções públicas, exceto:

....

III – a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;

...

§ 1º. Em qualquer dos casos, a acumulação somente será permitida quando houver CORRELAÇÃO DE MATÉRIAS e compatibilidade de horários.”

 

Essa condição (correlação de matérias entre o cargo técnico ou científico e o de professor), contudo, restou afastada no texto da CF/88, art. 37 XVI, como visto.

 

Votaram nesse sentido os Ministros Carlos Velloso (Relator), Francisco Rezek, Ilmar Galvão, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Néri da Silveira, Moreira Alves e o então Presidente Octávio Gallotti. Divergiu o Ministro Marco Aurélio. Na época, o STF estava com apenas 10 ministros, pois o Ministro Mauricio Corrêa ainda não tomara posse, apesar de já nomeado.

 

Cada Voto traz enfoques interessantes, por vezes analisando a mesma doutrina (ou o mesmo doutrinador) e chegando a conclusões opostas. Ou expressamente afirmando que, consoante o entendimento da Corte, desde sempre (são citados precedentes datados de 20 e 30 anos antes, sob a vigência de outras Constituições, inclusive) foi tradição do STF assim entender.

 

Há remissões às Constituições desde o Império. E considerações notadamente ao aspecto da moralidade, sempre exigido nas Cartas Magnas. Não deixa de ser, também, uma aula de Direito Constitucional comparado.

 

Alguns poucos excertos:

 

“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, portanto, interpretando norma constitucional – art. 185 da Constituição de 1946 – igual à que está inscrita no art. 37, XVI, da Constituição de 1988, era no sentido de que a acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida quando se trata de cargos legalmente acumuláveis na atividade.”

(....)

Tenho como acertada a lição do professor Ivan Barbosa Rigolin, a dizer que “o que se proíbe é o duplo ganho, mas é exatamente isso que parece interessar ao servidor aposentado que volta a ocupar posto público, e nesse sentido entendemos, a partir da nova Carta, proibida tal acumulação, se remunerada” (“O Servidor Público na Constituição de 1988”, Saraiva, 1989, pág. 159). (....).

 

O que não é possível é a acumulação de proventos com vencimentos de cargos efetivos, cargos de carreira.

 

Não procede a afirmativa no sentido de que a Constituição apenas veda a acumulação de cargos públicos. Que a Constituição é expressa no estabelecer tal acumulação, não há dúvida. Partir dessa proibição para a afirmativa no sentido de que a Constituição permitiria a acumulação de proventos com vencimento, é ir longe demais.”

(Voto do Relator, Min. Carlos Velloso)

 

“A tese jurídica que o recurso extraordinário quer ver derrubada pelo Supremo é a de que, em princípio, é possível começar nova carreira depois de haver esgotado, com a aposentadoria, outra carreira na função pública.

 

A esse respeito a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é monolítica. Foi fiel, em passado recente, àquilo que se disse em passado remoto. (....)”

(Voto do Min. Francisco Rezek)

 

“A Carta de 1988, fiel à tradição de nosso direito constitucional, revelado pela jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Federal, no art. 37, XIV (sic) manteve vedada a acumulação remunerada, sem sequer ressalvar, como fizera a EC 01/69, certas situações de aposentados, permitindo deduzir, por esse modo, que continuam eles sujeitos ao mesmo regime imposto aos servidores em atividade. (....).

 

Decorrência da modificação havida é que continua vedada  a acumulação de proventos de mais de um cargo, bem como de proventos com vencimentos ou salários de outro qualquer cargo, emprego ou função, isso não apenas em relação à Administração Direta, mas também em face de autarquias , empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações mantidas pelo Poder Público, salvo as exceções das alíneas a, b e c, do mencionado inciso XIV. (sic).

 

Entendimento em sentido contrário levaria a ter-se de admitir a possibilidade de acumulação, não dos proventos de um só cargo, mas de dois ou até três, com vencimento de um outro, o que soaria como verdadeiro absurdo. (....) com o fito de ver duplicados os vencimentos, situação que, além de reveladora de acumulação, constituiria flagrante atentado ao princípio da moralidade, expressamente consagrado no art. 37, caput, da Constituição Federal.”

(Voto do Min. Ilmar Galvão)

 

“Com efeito, impõe-se destacar, na análise do thema decidendum, que a Constituição revela-se inquestionavelmente hostil às acumulações remuneradas de cargos, funções  ou empregos públicos. O texto da Lei Fundamental promulgada em 1988 instituiu, em seu art. 37, XVI, a regra geral da inacumulabilidade funcional. Essa tem sido a posição tradicional vigente no direito positivo nacional e consagrado, desde a Carta Federal de 1891 (art. 73), pelas sucessivas Constituições republicanas brasileiras (CF/34, art. 172; CF/37, art. 159; CF/46, art. 185; CF/67, art. 97 e CF/69, art. 99).

 

Tenho para mim (...) que contraria a tradição do direito positivo brasileiro, tanto quanto dissente da jurisprudência firmada no tema em questão pelos Tribunais, o argumento de que os aposentados, por não mais ocuparem cargos públicos, estariam excluídos da regra geral de inacumulabilidade.”

 (Voto do Min. Celso de Mello).

 

“Já foi dito, nesta assentada, e com procedência, que a tradição do constitucionalismo brasileiro é no sentido da vedação de acumulações. Esse tratamento à espécie veio, até nós, desde o sistema português. (....) O decreto de 16 de junho de 1824, do Príncipe regente, reforçou a proibição de acumulações. (...).

 

(...) Não cabe distinção entre vencimentos e proventos, para os efeitos de acumulação remunerada, salvo ocorrendo disciplina específica. (...) os provento são percebidos, pelo inativo, porque houve anterior exercício de cargo público. Daí resulta que só são acumuláveis proventos originários de desempenho, na atividade, de cargos acumuláveis. (...). Essa tem sido a tradição de nosso direito. (...).

(...)

Dessa sorte, penso que ao aposentado não se admite exercer novo cargo a não ser naquelas hipóteses em que, na atividade, poderia manter, cumulativamente, os dois vínculos funcionais. (...) O mesmo sucede com um engenheiro aposentado em cargo de sua especialidade, que não poderá exercer cargo de médico, embora detenha a dupla titulação universitária. Isso porque, na atividade, não são acumuláveis os cargos de médico e engenheiro. (...)

(...)

(...). A locução “acumulação remunerada” abrange vencimentos e proventos, pois estes guardam sempre remissão ao cargo público que foi exercido pelo inativo. A noção de proventos, portanto, se equipara à de vencimentos, para os efeitos de acumulação remunerada.”

(Voto do Min. Néri da Silveira)

 

“Com efeito, (....), desde o momento em que não se admite o exercício de cargo público sem a percepção de remuneração, aludir à acumulação remunerada e cargos e funções públicas, se ela só se referisse aos servidores em atividade, seria pleonástico, pois toda a acumulação de cargos ou funções públicas na atividade é sempre remunerada.

 

Essa expressão acumulação remunerada deixa, porém, de ser pleonástica se se referir à hipótese em que o servidor está na inatividade quanto a cargo que ocupara antes da aposentadoria e ocupa cargo na ativa, o que é permitido desde que deixe de perceber seus proventos de aposentado, só percebendo a remuneração do cargo que atualmente exerce.”

(Voto do Min. Moreira Alves)

 

A quem preferir, busque conhecer os argumentos contrários do Voto vencido.

 

Posso apostar que pouca gente observa e obedece essas vedações que o STF disse serem imposições constitucionais.