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O Principio do Devido Processo Legal e sua Aplicação ao Processo Administrativo Previdenciário


O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E SUA APLICAÇÃO AO PROCESSO ADMINISTRATIVO PREVIDENCIÁRIO.

Sandra Carolino Santiago – Especialista em Direito Previdenciário


RESUMO

O processo administrativo é um dos mais efetivos instrumentos de resguardo dos direitos dos administrados, na medida em que obriga a Administração Pública a observar determinados trâmites antes de emitir seus atos, dificultando, com isso, a ocorrência de ampliação ou restrição injustificadas na esfera jurídica dos particulares. Torna-se necessário, para tanto, assegurar a participação dos administrados na formação da vontade estatal, razão pela qual a Lei nº 9.784/1999 congrega inúmeras formas de participação individual e coletiva dos interessados no processo administrativo. A pesquisa acerca do devido processo legal é de suma importância, porquanto tal princípio é profícuo e imprescindível para o processo administrativo regular em busca de uma correta subsunção da lei ao fato em concreto, ensejando aos administrados a possibilidade de se defender antes do ato decisório que irá atingir sua esfera de interesses e direitos. O princípio do devido processo legal é sustentado pelos princípios do contraditório, da ampla defesa e da motivação (apesar de autônomo e independentes entre si), integrando-se totalmente os incisos LIV e LV, ambos do artigo 5º da Carta Magna de 1988. Tais princípios ajudam a garantir a tutela dos direitos e interesses individuais, coletivos e difusos aos administrados no processo administrativo em face de outros administrados e, sobretudo, da própria Administração.

 


 

O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E SUA APLICAÇÃO AO PROCESSO ADMINISTRATIVO PREVIDENCIÁRIO

 

1 INTRODUÇÃO

 

É comum a prática do INSS de cancelar benefícios previdenciários gozados há anos pelos segurados e pensionistas, sob o argumento de concessão ou manutenção fraudulenta. Sem embargo de ser salutar a revisão dos benefícios, em razão das inúmeras fraudes que mutilam os cofres previdenciários e que devem ser coibidas com energia, não se pode admitir que o cancelamento, consubstanciado na anulação do ato administrativo vinculado concessivo do benefício, se opere sem que seja instaurado o procedimento administrativo para apuração da irregularidade, oportunizando-se o contraditório e a mais ampla defesa por parte do afetado.

 

A Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, conhecida como Lei do Processo Administrativo Federal e incorporada ao Sistema Previdenciário, em seu art. 53, incorporou expressamente preceito que já vinha sendo reconhecido tanto pela doutrina como pela jurisprudência, no sentido de reconhecer a legitimidade da Administração para invalidar os seus próprios atos.

 

Não raras vezes, o exercício dessa prerrogativa da Administração acarreta em prejuízo para o administrado, intervindo em situação jurídicas que o beneficiava.

 

Não raras vezes, a Administração exerce tal poder sem verificar se há ou não boa fé nos efeitos jurídicos gerados pelo ato administrativo viciado, ignorando totalmente a própria estabilidade de suas relações com o administrado.

 

O arbítrio no exercício dessa prerrogativa acaba produzindo mais prejuízos para o Estado do que a própria permanência do ato administrativo viciado dentro do regime jurídico-administrativo, quebrando a confiança do administrado na ação administrativa. Embora artifícios maliciosos existam para que mau administrador burle decisão judicial favorável ao administrado, fundada na responsabilidade estatal, a conta não deixa de chegar.

 

No art. 5º, inciso LV, da Lei Maior, prescreve-se que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório, com os meios e recursos a ele inerentes.” Estaria a Administração, quando prestes a invalidar os seus próprios atos, necessariamente obrigada a comunicar os administrados tal intenção?

 

Essa é a indagação que norteia o presente trabalho.

 

2 PREVIDÊNCIA SOCIAL

 

A Previdência Social, é definida no art. 6º da Constituição Federal de 1988 como um dos direitos sociais garantido, adquire caráter de estrutura conforme o art. 194, quando definida como um dos componentes do Sistema de Seguridade Social.

 

Na definição de Celso Barroso Leite (1962), Previdência Social seria o 

 

conjunto de medidas, a cargo do poder público, destinadas a proteger as classes assalariadas e tanto quanto possível a população em geral contra determinadas situações que afetam a capacidade econômica individual ou familiar, seja pela cessação dos rendimentos, seja pela superveniência de necessidades especiais. PREVIDÊNCIA SOCIAL propriamente dita só começou a existir quando o Estado a trouxe para sua órbita de ação, tornando-a serviço público.

 

Em sentido semelhante a definição de Wagner Balera (2004):

 

A previdência social é, antes de tudo, uma técnica de proteção que depende da articulação entre o Poder Público e os demais atores sociais. Estabelece diversas formas de seguro, para o qual ordinariamente contribuem os trabalhadores, o patronato e o Estado e mediante o qual se intenta reduzir ao mínimo os riscos sociais, notadamente os mais graves: doença, velhice, invalidez, acidentes no trabalho e desemprego.

 

O modelo da Previdência Social brasileira é de participação obrigatória, contributivo, com sistema de repartição simples, no qual as contribuições sociais originam um fundo único, do qual saem os recursos para o pagamento de prestações a qualquer beneficiário que, tendo sido atingido pela contingência prevista, atenda os requisitos da legislação previdenciária. O modelo descrito é o Regime Geral de Previdência Social.

 

Também integra a Previdência Social brasileira o Regime Facultativo Complementar de Previdência Social de relação jurídica privada, com características de seguro.

 

A natureza, enquanto Regime Geral da Previdência Social é essencialmente de serviço público. Ao Estado cabe a função de administrar a Previdência Social. Essa tarefa não caberia nas operações rotineiras da administração pública, por isso a administração é feita de forma descentralizada através de uma autarquia, estrutura teoricamente mais dinâmica. Assim, o Decreto-lei nº 72 de 21-11-1966 criou o INPS – Instituto Nacional de Previdência Social, hoje denominado INSS – Instituto Nacional do Seguro Social, autarquia responsável pela administração do sistema previdenciário brasileiro. 

 

No Brasil, é a Constituição que define a seguridade social como serviço público. Chamada a intervir no interior da Ordem Social, a Administração Pública assume tarefas peculiares no contexto do Estado Social (também chamado de Estado-providência, ou Welfare State) e se vê forçada a remodelar seus modos clássicos de atuação. Trata-se de serviço público que, por igual, se expressa através de duas espécies de prestações: os benefícios e os serviços. Mas, nesta área da seguridade social, serviços são aquelas prestações instrumentais ou acessórias que se destinam a garantir o pleno exercício do direito ao benefício (BALERA, 1999).

 

As fontes normativas da Previdência Social Brasileira são, além da Constituição Federal de 1988, as Leis nºs 8.212/1991 (Plano de Custeio) e 8.213/1991 (Planos de Benefícios da Previdência Social), e o Decreto nº 3.048/1999 (Regulamento da Previdência Social).

 

A proteção previdenciária é feita através da concessão de prestações, benefícios ou serviços, elencados no art. 18 da Lei nº 8.213/1991, aos segurados ou seus dependentes, que atingidos pelas contingências previstas cumpram os requisitos determinados na legislação, sendo:

 

I - quanto ao segurado: aposentadoria por invalidez; aposentadoria por idade; aposentadoria por tempo de serviço; aposentadoria especial; auxílio-doença; salário-família; salário-maternidade; auxílio-acidente; pecúlio (Revogado pela Lei nº 8.870, de 15-4-94);

 

II - quanto aos dependentes: pensão por morte e auxílio-reclusão;

 

III - quanto ao segurado e dependente: serviço social e reabilitação profissional.

 

3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO

 

Sendo a prestação previdenciária um direito subjetivo público, também caracterizada como um serviço público, cumpre-nos a análise do regime jurídico administrativo, no qual em última instância se dará a execução do direito em questão e ao qual se sujeita o ramo do Direito Previdenciário.

 

O sistema de uma disciplina jurídica, seu regime, constitui-se do conjunto de princípios que lhe dão especificidade em relação ao regime de outras disciplinas. O Direito Administrativo é o ramo do Direito Público que disciplina o exercício da função administrativa e os órgãos que a desempenham.

 

Função pública, no Estado Democrático de Direito, é a atividade exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica (MELLO, 2004).

 

O poder político do Estado Democrático de Direito, é uno e indivisível. Todavia, o texto constitucional (art. 2) consagra a divisão funcional desse poder em três: executivo, legislativo e judiciário (PORTA, 2003).

 

Dentre as funções públicas, que podem ser legislativas, judiciais ou administrativas, interessa definir essa última.

 

Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça às vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquico e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário (MELLO, 2004).

 

A função administrativa previdenciária consistirá na qualificação da necessidade vital e, baseada nessa medida, na concretização do objeto da prestação (BALERA, 1999).

 

No Direito Administrativo, algumas noções ou princípios são categoriais em relação a outros. Assim se processa uma cadeia descendente de princípios e categorias até os níveis mais específicos. Alguns alicerçam todo o sistema; outros, destes derivados, dizem respeito ora a uns, ora a outros institutos, interligando-se todos, não só em plano vertical, como horizontal, formando uma unidade, um complexo lógico, a que se pode chamar de regime administrativo.

 

No entender de Celso A. Bandeira de Mello, todo o sistema de Direito Administrativo se constrói sobre dois princípios fundamentais, que se desdobram e refletem em outros: princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público pela Administração.

 

Da supremacia do interesse público sobre o particular derivam as seguintes conseqüências ou princípios subordinados:

 

a) posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo interesse público e de exprimi-lo, nas relações com os particulares;

 

b) posição de supremacia do órgão nas mesmas relações.

 

Explica ainda o autor citado acima que uma vez que a atividade administrativa é subordinada à lei, e firmado que a Administração assim como as pessoas administrativas não têm disponibilidade sobre os interesses públicos, mas apenas o dever de curá-los nos termos das finalidades predeterminadas legalmente, compreende-se que estejam submetidas aos seguintes princípios:

 

a) da legalidade, com suas implicações ou decorrências; a saber: princípios da finalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da motivação e da responsabilidade do Estado;

 

b) da obrigatoriedade do desempenho de atividade pública e seu cognato, o princípio de continuidade do serviço público;

 

c) do controle administrativo ou tutela;

 

d) da isonomia, ou igualdade dos administrados em face da Administração;

 

e) da publicidade;

 

 

f) da inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses públicos;

 

g) do controle jurisdicional dos atos administrativos.

 

A administração pública, na relação de proteção previdenciária, deve agir em conformidade com o regime jurídico administrativo em geral. Deve respeitar os mesmos princípios constitucionais e específicos que caracterizam esse regime ou sistema. Apenas a matéria será específica, particular. As particularidades do Direito Previdenciário fazem com que este possa ser estudado como um ramo autônomo do direito, mas ainda assim constitui-se em um direito público, e assim sujeito, no tocante ao processo administrativo, ao regime jurídico do Direito Administrativo.

 

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO ADMINISTRATIVO

 

4.1 Processualidade na função administrativa

 

O Estado, para atingir suas finalidades, necessita da expedição de normas concretas. Através dessas normas, há a concretização dos preceitos estatuídos pela lei.

 

Cabe a função administrativa a determinação e a formação das situações jurídicas individuais que deverão ser regidas pelo preceito normativo proposto no texto legal, finalizando sua concretização normativa através de uma norma de decisão, o ato administrativo (FRANÇA, 1998, p. 20).

 

Os atos administrativos são normas concretas que têm por finalidade constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica administrativa (MELLO, 2004, p. 272). Mas essas normas não surgem do nada.

 

O ato administrativo tem como requisitos de validade ou elementos constitutivos: agente competente, objeto, forma, motivo e fim. É caracterizado ainda como declaração de vontade expressa ou tácita do Estado ou de quem lhe faça às vezes; sujeição ao regime jurídico de direito público, aos princípios constitucionais e aos próprios do direito administrativo; produção de efeitos jurídicos imediatos e possibilidade de controle jurisdicional (MORAES, 2002).

 

Alguns de seus atributos elencados pela doutrina são: presunção de legitimidade e veracidade, imperatividade, auto-executoriedade e tipicidade.

 

O ato administrativo, ou decisão, nem sempre é editado de imediato. Por vezes necessita de uma série de etapas inter-relacionadas até chegar-se à edição de um ato final.

 

O ato administrativo é o resultado em si do método dinâmico da processualidade jurídico-administrativa (PORTA, 2003).

 

A decisão que concede o benefício, ou aquela que resolve denegá-lo, é ato unilateral do órgão administrativo. Identificando, claramente, dois atos unilaterais: a) o requerimento e; b) a decisão do Poder Público. Orlando Gomes afirma que esse modo de operar o direito social se faz presente nas chamadas prestações administrativas, como a previdenciária (BALERA, 1999).

 

Toda a atividade do Estado é caracterizada pela processualidade (SUNDFELD, 1997, p. 66-68). Para exercer seu poder, necessita o Estado do emprego de uma seqüência ordenada de atos e de fatos jurídicos para expressar sua “vontade funcional.” (SUNDFELD, 1997, p. 67).  Sem a processualidade, não há manifestação normativa.

 

4.2 Processo ou procedimento administrativo

 

A Constituição Federal, em diversos pontos, emprega a expressão “processo administrativo”. Aliás, foi o termo preferido na Lei Federal nº 9.784/1999. Embora “processo” normalmente seja identificado com a função jurisdicional, a doutrina e a jurisprudência mais recente têm entendido que a expressão pode também ser utilizada para indicar a processualidade da função administrativa.( Ver STJ, ROMS nº 8116-SC, Rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, unânime pelo não provimento, julgado em 16.09.99, DJ 11.10.99).

 

Dentro da processualidade administrativa, temos o procedimento administrativo, consistente na sucessão encadeada e necessária de atos e fatos jurídicos que deve preceder o ato administrativo. É possível, em se tratando de função administrativa, que excepcionalmente apenas um ato jurídico seja suficiente para introduzir a norma no sistema (TOSCANO, 1997, p. 211-212 e 229).

 

Se a seqüência demanda a participação dos destinatários do ato administrativo, temos o processo administrativo. O processo administrativo, portanto, é uma espécie de procedimento administrativo.

 

Não há um critério unânime, na doutrina, para fixar a distinção entre processo e procedimento (CINTRA; GRINOVER e DINAMARCO, 1991, p. 247-255). Contudo, o critério adotado é o que melhor, a nosso ver, reflete a acepção de “processo” constitucionalmente fixada.

 

O processo é um instrumento para a democratização do exercício do poder. Através do processo, permite-se ao cidadão participar da construção das normas jurídicas que irão reger sua vida social. Há um processo legislativo, autorizando o cidadão, através de seus representantes, a opinar sobre o conteúdo das leis; há um processo jurisdicional, que confere ao cidadão o direito de buscar e participar na resolução dos conflitos em que esteja envolvido; e, por fim, um processo administrativo, revelando a Administração para os administrados, por viabilizar a participação destes no que antecede a expedição das decisões administrativas.

 

Importante assinalar lição de Carlos Ari Sundfeld (1997, p. 67) sobre essa matéria, ao lembrar que a lei, a sentença e o ato administrativo não estão imediatamente condicionados ao assentimento do particular, sendo:

 

[...] o processo a contrapartida que se assegura à liberdade pelo fato de o ato de autoridade ser unilateral, dentro da proposta de resguardar o equilíbrio entre a liberdade e a autoridade. Sem que o ato estatal deixe de ser ato de autoridade e, portanto, imperativo, se permite o exercício da liberdade: condicionando a produção do ato a um processo regulado do qual o indivíduo possa participar. Sob este ângulo, o processo cumpriria um papel eminentemente ligado à tutela dos direitos individuais.

 

Por seu turno, Cândido Dinamarco (2003, p. 152-166) conclui ser o procedimento um sistema de atos interligados numa relação de dependência sucessiva e unificados pela finalidade comum de preparar o ato final de consumação do exercício do poder. Sustenta o insigne processualista que haverá processo administrativo desde que esse procedimento seja realizado em contraditório e em harmonia com outras garantias processuais, atreladas originariamente ao processo judicial, porém incidentes, por expressa determinação constitucional, na processualidade administrativa. Para o autor, em síntese, o que caracteriza fundamentalmente o processo é a celebração contraditória do procedimento.

 

O procedimento ou processo administrativo revela-se de grande utilidade para complementar a garantia da defesa jurisdicional porquanto, em seu curso, aspectos de conveniência e oportunidade passíveis de serem levantados pelo interessado podem conduzir a Administração a comportamentos diversos dos que tomaria, em proveito do bom andamento da coisa pública e de quem os exibiu em seu interesse.

 

Assim, o processo administrativo caracteriza-se pela atuação dos interessados, em contraditório, seja ante a própria Administração, seja ante outro sujeito (administrado em geral, licitante, contribuinte, por exemplo), todos, neste caso, confrontando seus direitos ante a Administração (MEDAUAR, 2004, p. 193). 

 

Dúvida não resta, portanto, de que o processo administrativo deve ser visto, no Estado Democrático de Direito, como instrumento de participação dos administrados na formação da decisão estatal – e, nessa medida, como forma de superação da atuação estatal autoritária e de garantia aos direitos dos administrados.

 

De ver está, ainda, no contexto do resguardo dos direitos dos administrados, que o processo administrativo facilita sobremaneira o controle da Administração. Isso porque, uma vez que a atuação administrativa esteja processualizada – o que significa dizer que os agentes públicos, para emitir atos, devem observar rigorosamente as normas processuais pertinentes -, é muito mais fácil acompanhar a formação do ato e constatar, se for o caso, a ocorrência de vícios. A regulação do processo administrativo representa um feio para a Administração Pública, já que através dele sua atuação resta submetida a intenso controle.

 

4.3 Devido processo legal administrativo

 

O devido processo legal representa o conjunto de princípios e regras constitucionais que devem ser observados pelo Estado em sua processualidade. Essa cláusula constitucional determina diretrizes que devem ser seguidas pelo Poder Público na produção do direito positivo.

 

Rui Portanova (2001, p. 147) coloca que o princípio do devido processo legal nasceu com a preocupação de garantir ao cidadão um processo ordenado. Hoje o objetivo é maior. Adaptado à instrumentalidade, o processo legal é devido quando se preocupa com a adequação substantiva do direito em debate, com a dignidade das partes, com preocupações não só individualistas e particulares, derivando para o social e para o direito substantivo, em conformidade à realidade em que estamos inseridos. 

 

Há forte entendimento doutrinário em favor de uma dupla acepção do devido processo legal em nosso sistema jurídico (FIGUEIREDO, 1996, p. 37). Ao lado desse sentido processual, haveria outro, substancial ou material que aglutinaria o conjunto de princípios e regras que vinculam o próprio conteúdo das normas jurídicas estatais.

 

Devido processo legal processual, procedimental, ou adjetivo significa basicamente um procedimento ordenado. Assim, o aplicador do Direito deve estar atento para não atingir quaisquer dos interesses protegidos pela garantia, sem antes trilhar por certos caminhos.

 

O conteúdo material do devido processo legal significa que o Estado não pode, a despeito de observar a seqüência de etapas em um dado procedimento, privar arbitrariamente os indivíduos de certos direitos fundamentais. Exige-se razoabilidade da restrição.

 

Portanto, qualquer restrição ou condicionamento a direito fundamental deve preservar seu núcleo essencial; impõe severamente o devido processo legal substancial.

 

A respeito do devido processo legal, adiante-se, desde logo, a magistral lição de Cármen Lúcia Antunes Rocha (1997, p. 189-222):

 

Quanto ao processo administrativo, o princípio do devido processo legal constitucionalmente assegurado significa, em primeiro lugar, o dever da Administração Pública de atuar material e formalmente segundo o que o Direito determine, fazendo com que o desempenho dessa atividade se faça por uma relação tendo como um dos pólos o administrado, que participa da dinâmica administrativa; em segundo lugar, o direito desse administrado de que essa relação se desenrole segundo os princípios que conferem segurança jurídica a seu patrimônio. Assim, o devido processo legal administrativo concerne tanto à forma quanto ao conteúdo das decisões administrativas, e por ele se garante a certeza tanto do dever público quanto do direito do particular na relação administrativa.

 

Inocêncio M. Coelho (1997, p. 23) ensina que as decisões dos intérpretes-aplicadores do direito são controláveis, à medida que consideram a consciência jurídica geral e o devido processo legal. Assim, ele professa a idéia de que a observância do devido processo legal é um dos meios de se racionalizar a interpretação constitucional.

 

O devido processo legal projeta-se no momento da criação e da interpretação-aplicação do texto normativo, não para dar solução ao conflito de interesses em litígio, mas para servir de pauta orientadora e de conferência para o sujeito, tanto sob a dimensão material quanto processual. Significa, portanto, não só um guia de razoabilidade e proporcionalidade, mas um dever de obediência ao procedimento que melhor atenda aos interesses de justiça.

 

Como guia de razoabilidade e proporcionalidade, o princípio do devido processo legal atua por ocasião da tarefa de concordância prática entre os bens protegidos constitucionalmente, afim de que eles obtenham uma máxima efetividade.

 

A dimensão procedimental do princípio do devido processo legal traduz-se em diversas garantias, que permitem a facilitam a proteção e a participação de grupos, mais ou menos, marginalizados do processo político. Ao mesmo tempo em que o controle da razoabilidade permite sindicar o conteúdo da norma, verificando se ela não atingiu indevidamente o núcleo dos direitos protegidos.

 

Quando se menciona a acepção substancial do devido processo legal no direito administrativo, há referência direta ao produto, o ato administrativo. No sentido processual, é a processualidade o objeto de incidência.

 

Para Odete Medauar (1993, p. 83), os incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição devem ser lidos de forma combinada. Bem por isso o devido processo legal desdobra-se, sobretudo, nas garantias do contraditório e da ampla defesa, com aplicabilidade no processo administrativo.

 

Na lição de Sérgio Ferraz (1998, p. 157):

 

[...] somente se pode pensar em efetiva realização do princípio democrático quando (e onde) possa o administrado participar da feitura do querer administrativo, ou da sua concretização efetiva. Para tanto, imprescindível é que se assegure ao cidadão o postular junto à Administração, com a mesma corte de garantias que lhe são deferidas no processo jurisdicional (particularmente, as certezas do contraditório e da publicidade).

 

O campo disciplinar foi o que primeiro se ressentiu da necessidade da aplicação do devido processo legal, porque também a Administração impõe penalidades, quer por infração à lei, quer ao regulamento ou ao contrato, que afetam os bens tutelados pelo devido processo legal.

 

Ao lado do poder disciplinar, a Administração dispõe do poder de polícia, apto a efetivar restrições individuais em favor da coletividade. Neste sentido, pontua Hely Lopes Meirelles (1995, p. 115), este poder serve para o Estado-Administração condicionar e restringir o uso de gozo de bens, atividades e direitos individuais. Para o pleno exercício das atividades que lhe são inerentes, o administrador dispõe da discricionariedade da auto-executoriedade e da coercibilidade. Assim, o poder público detém a faculdade de decidir e executar, por seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário, suas medidas de polícia administrativa.

 

Salienta-se, contudo, que este poder não é soberano, os seus limites acham-se demarcados não só pelo interesse da comunidade, mas também, e especialmente, pelos direitos fundamentais do indivíduo assegurados na Constituição Federal. O administrador deverá promover um equilíbrio entre ambos, a fim de que nenhum deles reste aniquilado arbitrariamente.

 

Assim, não basta ressaltar o direito de acesso à Justiça, segundo o qual o particular pode em se sentindo agravado nos seus direitos, postular perante o Judiciário a correção da ilegalidade administrativa, ou eventual indenização respectiva.

 

É preciso que a atividade estatal restritiva de direitos fundamentais atue de forma a resguardar o núcleo essencial do direito tutelado, sendo norteada pelo devido processo legal substantivo, o qual se faz atuar por meio dos preceitos de razoabilidade e proporcionalidade. E, ao mesmo tempo, deve garantir ao administrado um procedimento, seja antes, ou depois do ato de polícia, com vistas em minimizar o risco de decisões que ultrapassam os limites legais, ou seja, de decisões arbitrárias, e evitar o congestionamento do Judiciário com questões que poderiam ser resolvidas na órbita administrativa.

 

O devido processo legal na instância administrativa nada mais significa do que a garantia de que as decisões estatais – restringindo ou ampliando esferas jurídicas – serão alcançadas sempre com a observância do processo adequado. Para tanto, é mister zelar pela seqüência de atos e fatos que devem preceder o ato administrativo final (aspecto formal), bem como considerar, no andamento do processo, as normas jurídicas pertinentes, de forma absolutamente harmoniosa com o interesse público (aspecto substancial).

 

4.3.1  As vicissitudes constitucionais

 

A história constitucional brasileira registra a existência de oito constituições (ALVES, 1985).( 1984, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988).  E, à exceção da última, nenhuma delas consagrou de forma irrefutável a cláusula do devido processo legal.

 

Conquanto saibamos que, por ocasião da elaboração da Carta Imperial de 1824, a Constituição dos Estados Unidos já recebera a sua Quinta Emenda, onde constava a cláusula due process of law, o ordenamento constitucional brasileiro não chegou a sofrer a sua influência direta. Mas, do seu Texto, é possível extrair dispositivos evidenciadores de algum conteúdo limitativo à ação estatal no campo dos direitos humanos.( Confira-se, a título de exemplo, alguns incisos do artigo 179, da Carta Política de 1824:

 

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:

 

VIII - Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declarados nas leis;

 

XI - Ninguém será sentenciado, senão pela autoridade competente, por virtude de leia anterior, e na forma por ela prescrita;

 

XVII – A exceção das causas, que por sua natureza pertencem a juízos particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado, nem comissões especiais nas causas cíveis, ou crimes).

 

Fruto da radical reforma política ocorrida com a Proclamação da República no ano de 1889, a primeira Constituição da era republicana brasileira, datada de 24.02.1891, conservou em seu texto as conquistas no campo dos direitos individuais, acrescentando-lhes novos direitos como, por exemplo, a plenitude de defesa, a liberdade de associação e de expressão, além de garantir a existência de outros direitos não-enumerados expressamente.

 

A Constituição de 16.07.1934, de caráter eminentemente democrático, não conseguiu sobreviver por muito tempo (vigeu por três anos) às intempéries políticas da época. Mas, trouxe em seu bojo uma sensível ampliação dos interesses contidos não direito à liberdade: liberdade de crença, liberdade de profissão, etc. Renova-se no artigo 114, a expressa previsão dos direitos e garantias implícitos, passíveis de inclusão no sistema.

 

A Constituição brasileira de 10.11.1937 depôs algumas conquistas fundamentais incorporadas na Constituição anterior. Assim, ela criou sérias restrições aos direitos individuais e suas garantias. Extirpou do texto os princípios da legalidade e da irretroatividade da lei, entre outros de tamanha importância.

 

A Constituição promulgada em 18.09.1946, no caput do artigo 141, expressou solenemente os grandes princípios regedores das liberdades humanas. Pregava os direitos individuais como instrumento de resistência ao poder.

 

A Constituição de 24.01.1967 seguiu as linhas básicas da Constituição de 1937. Ela continuou a prever a inclusão dos direitos e garantias implícitos (artigo 150, § 35), mas se revelou autoritária ao prever a suspensão dos direitos fundamentais.

 

José Frederico Marques (1968, p. 28), na vigência da Constituição de 1967, afirmou:

 

No direito pátrio, está implícita entre as garantias constitucionais, a do chamado ‘due process os law’ (ou ‘devido processo legal’) em face do que diz o art. 150, § 35, da Constituição do Brasil de 1967, ‘in verbis’ [...]. Desse modo, também entre nós: ninguém será privado da vida, da liberdade ou da propriedade sem o devido processo legal. 

 

A Emenda constitucional nº 01, de 17.10.1969, considerada como a Constituição de 1969 por alguns juristas, manteve inalterado o direito de ação e a garantia de ampla defesa aos acusados, acrescida de instrução criminal contraditória, além de outros direitos e garantias, inclusive aqueles implícitos no ordenamento.

 

A ordem jurídica, instalada com a Constituição Política de 05.10.1988, consagrou expressamente a incorporação do devido processo legal no sistema jurídico brasileiro, nos seguintes termos: Art. 5º [...] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

 

Deparamo-nos hoje com um tratamento do devido processo legal, tanto sob o aspecto procedimental quanto sob o substantivo, que atua não apenas perante o Judiciário na resolução dos litígios, mas também frente aos poderes Executivo e Legislativo.

 

5 CONTRADITÓRIO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO

 

5.1 Noções de contraditório

 

O princípio do contraditório integra o devido processo legal administrativo, obrigando à Administração a cientificar os administrados sobre a existência e o conteúdo dos processos que versem sobre seus interesses individuais (TOSCANO, 1997, p. 217). É reconhecido ao Poder Judiciário o poder de verificar a ação da administração pública sob o prisma do devido processo legal, ainda que não adentre no mérito da decisão administrativa.( Ver STF, RE nº 165680-SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, unânime pelo provimento, julgado em 28.04.95, DJ 15.09.95, p. 29.535; STF, MS nº 20775-DF, Rel. Min. Oscar Correia, Pleno, unânime pelo indeferimento, julgado em 02.06.88, DJ 01.07.88, p. 16.899; e STJ, RESP nº 208293-CE, Rel. Min. Vicente Leal, Sexta Turma, unânime pelo não conhecimento, julgado em 08.06.99, DJ 28.06.99). Aproveitando a lição de Odete Medauar (1993, p. 96): “em essência, o contraditório significa a faculdade de manifestar o próprio ponto de vista ou argumentos próprios, ante fatos, documentos ou pontos de vista apresentados por outrem.”

 

Para Cármen Lúcia Antunes Rocha (1997, p. 18)

 

o contraditório significa que a relação processual forma-se, legitimamente, com a convocação do acusado ao processo, a fim de que se estabeleça o elo entre o quanto alegado contra ele e o que ele venha sobre isso ponderar. Somente na dialética processual é que se afirma o Direito, de tal modo que uma assertiva e a sua contradita combinam os elementos donde o julgador extrai, a sua decisão jurídica.

 

O contraditório garante não apenas a oitiva da parte, mas que tudo quanto apresente ele no processo, suas considerações, argumentos, provas sobre a questão sejam devidamente levadas em conta pelo julgador, de tal modo que a contradita tenha efetividade e não apenas se cinja à formalidade de sua presença.

 

A Administração não perde sua posição de supremacia ao efetivar o contraditório, mas sim observa a obrigação de comunicar ao administrado a contingência de um ato administrativo que pode afetar a respectiva esfera de direitos individuais.

 

Não concordamos com a lição no sentido de visualizar uma equivalência entre as posições da Administração e administrado quando presente o contraditório, haja vista ser insustentável uma posição de igualdade quando um dos pólos da relação permanecer com o poder de expedir unilateralmente norma jurídica vinculante e imperativa para o outro pólo. Afinal, uma das características do regime jurídico-administrativo, decorrente do princípio da prevalência do interesse público, é justamente a posição de supremacia de quem exerce a função administrativa (MELLO, 2004, p. 30).( Há defesa no sentido de que as posições jurídicas entre administração pública e administrado são igualadas no processo administrativo. Ver MEDAUAR, Odete. 1993, p. 97; e FAZZALARI, Elio. 1996, p. 827).

 

O contraditório confere um caráter dialético ao processo administrativo, possibilitando à Administração conhecer a antítese pelo administrado para formar uma síntese (ato administrativo) adequada ao interesse público.( “Parte-se do suposto de que a verdade só pode ser evidenciada pelas teses contrapostas das partes”, como bem leciona ROCHA, José de Albuquerque. 1996, p. 51-52).

 

Prestemos atenção a um ensinamento de Cintra, Grinover e Dinamarco (1991, p. 55-56) que, embora concebida para o processo judicial, traz-nos preciosos elementos para a compreensão do processo administrativo:

 

O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas eqüidistantes delas; ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. [...] É por isso que foi dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas, mas sim de “colaboradores necessários”: cada um dos contendores age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas ação combinada dois serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que o envolve.

 

A inexistência de jurisdição administrativa em nosso sistema jurídico não permite a formação da angularidade que caracteriza a relação jurídica processual (judicial). A relação jurídica entre Administração e administrado não deixa de linear quando há o contraditório. Todavia, ainda que atue visando o seu próprio interesse, em conjunto com a atividade da Administração, o administrado se torna colaborador do interesse público, viabilizando uma melhor aplicação da lei ao caso concreto (MEDAUAR, 1993, p. 102-103).

 

E seguindo ensinamento de José Cretella Júnior (1999, p. 40):

 

Não obstante se trate de binômio, não de trinômio (como no direito processual civil), as partes em ação, na realidade são contrapostas [...], defendem não raras vezes interesses antagônicos: os administrados, pleiteando os direitos que a lei lhes faculta, a Administração velando para que os deveres sejam observados, ambos, enfim, em última análise, fornecendo elementos para que a justiça figure sempre em primeiro plano e o Estado atinja do melhor modo o fim elevado a que se propõe realizar.

 

Rosimiro Leal [...] conclui-se que o processo, ausente o contraditório, perderia sua base democrático-jurídico-principiológica e se tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida imponderável da liberdade das partes (1999, p. 191).

 

Segundo Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 127) o contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo.

 

5.2 Desdobramento do contraditório na Lei nº 9.784/1999

 

5.2.1 Direito à informação geral

 

A Lei nº 9.784/1999 veio acolher uma velha reivindicação dos estudiosos do direito administrativo. Padecia o regime jurídico-administrativo de um diploma legislativo que disciplinasse a processualidade da Administração (MEDAUAR, 1993, p. 137-157).

 

Em vários pontos, a lei federal de processo administrativo (LFPA), concedeu mais densidade ao princípio do contraditório.

 

No art. 2º, caput, da LFPA, estatui-se expressamente o princípio do contraditório como princípio da Administração, que já estava no art. 5º, inciso LV, da Lei Maior.

 

O princípio do contraditório determina à Administração o respeito ao direito do administrado à informação geral, que lhe confere a prerrogativa de examinar os fatos que estão na formação do processo e demais dados, documentos e provas que surgirem em seu curso (MEDAUAR, 1993, p. 104). O administrado tem o direito à ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, bem como de acesso aos autos, à obtenção de cópias de documentos nele contidos e, ainda, às decisões proferidas.( LFPA, art. 3º, III; e art. 46. Ver STJ, ROMS nº 9946-DF, Rel. Min. Edson Vidigal, Quinta Turma, unânime pelo não provimento, julgado em 17.08.99, DJ 20.09.99; e STJ, MS nº 6045-DF, Min. Hélio Mosimann, Primeira Seção, maioria pela concessão da segurança, julgado em 26.05.99, DJ 27.09.99).

 

Aliás, constitui critério a ser observado pela Administração a “garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio.”( Ver LFPA, art. 2º, parágrafo único, X).

 

A LFPA(Ver art. 46, Cf. também CF, art. 5º, X) limita o direito à informação geral, ao não permitir o acesso do administrado aos dados e documentos de terceiros protegidos por sigilo decorrente da segurança nacional ou da proteção constitucional à privacidade, à honra e à imagem.

 

5.2.2 Ouvida dos sujeitos ou audiência das partes

 

Esse aspecto mescla-se com facilidade aos desdobramentos da ampla defesa. Consiste, em essência, na possibilidade do administrado de manifestar o próprio ponto de vista sobre fatos, documentos, interpretações e argumentos apresentados pela Administração e por outros sujeitos. Aí se incluem o direito paritário de propor provas (com razoabilidade), o direito de vê-las realizadas e apreciadas e o direito a um prazo suficiente par a o preparo de observações a serem contrapostas (MEDAUAR, 2004, p. 200). Assegurado esse direito, fortalece-se a regularidade do processo Administrativo.( Ver STF, AI-AgR nº 142847-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, unânime pelo não provimento, julgado em 01.12.92, DJ 05.02.93, p. 849; e STJ, MS nº 3889-DF, Rel. Min. Gilson Dipp, Terceira Seção, unânime pelo indeferimento, julgado em 13.10.99, DJ 16.11.99).

 

Essa faculdade do administrado está implícita entre os vários dispositivos que regulam a fase instrutória do processo administrativo.( Ver LFPA arts. 29, caput; 38, caput, e parágrafo único; e 41). Em especial, o art. 41 da LFPA, que determina a sua intimação para se pronunciar sobre a prova ou diligência determinada pela autoridade competente; e o art. 44 do mesmo diploma legal, ao estabelecer que encerrada a instrução, tem o interessado o direito de se manifestar no prazo máximo de dez dias, caso outro prazo não tiver fixado em lei.

 

Vê-se que o direito de ser ouvido é necessário para assegurar melhor conhecimento dos fatos e, por conseguinte, auxiliar a atuação administrativa, imprimindo-lhe maior eficiência, acerto e correção. Seguindo essa linha, salienta Agustín Gordillo (1994, p. 343-360) que o princípio de ouvir o interessado antes de decidir algo que irá afetá-lo não é somente um princípio de justiça, mas também um princípio de eficácia, porque indubitavelmente assegura um melhor conhecimento dos fatos e, portanto, conduz a uma melhor administração, além de uma decisão mais justa.

 

5.2.3 Das provas

 

Os direitos e pretensões jurídicas são oriundas de fatos aos quais o Direito atribui determinados efeitos. Para que se obtenham os referidos efeitos, em sede judicial, é necessário que se prove adequadamente os fatos que lhes dão suporte (PONTES DE MIRANDA, 1979, p. 311). Daí a necessidade de uma adequada teoria da prova.

 

Moacyr Amaral Santos conceitua prova como o conjunto de meios pelos quais se fornece ao juiz o conhecimento da verdade dos fatos deduzidos em juízo (“prova é a soma dos fatos produtores da convicção, apurados no processo”), sendo que sua finalidade é justamente a formação da convicção, no espírito do julgador, quanto a existência dos fatos da causa (1986, p. 3-4; no mesmo sentido: Pontes de Miranda, 1979, p. 329).

 

No trilhar de idéias, Renato Saraiva (2005, p. 329) afirma que

 

prova, no âmbito do direito processual, é o meio utilizado para a demonstração, no processo, da veracidade dos fatos controvertidos. É que, no processo de cognição, para que o magistrado possa formar o seu convencimento sobre os fatos controvertidos e proferir a sentença, é fundamental que seja realizada a colheita das provas necessárias ao livre convencimento do julgador acerca dos fatos ocorridos na causa.

 

Pontes de Miranda (1979, p. 312), por sua vez, define prova como “o ato judicial, ou processual, pelo qual o juiz se faz certo a respeito do fato controverso ou do assento duvidoso que os litigantes trazem a juízo.”

 

A prova tem por finalidade convencer o magistrado da certeza da existência ou inexistência dos fatos alegados pelas partes, pois a incidência da norma jurídica depende da comprovação inequívoca da existência do fato da vida aduzido pelos litigantes (MILHOMENS, 1986, p. 5 e 46).

 

Portanto, prova, em termos de teoria processual, quer significa “os meios e instrumentos (que) servem para criar no espírito do destinatário, que é o juiz, a certeza da existência do fato, do objeto, da relação jurídica ou das circunstâncias nos termos e na medida em que a lei exige uma tal certeza.” (MILHOMENS, 1986, p. 6).

 

Verifica-se que as provas possuem o condão de fornecer ao juiz os elementos necessários para a reconstrução, em juízo, de acontecimentos passados, com a finalidade de que ele possa formar o seu próprio convencimento sobre a verdade [...] dos fatos históricos alegados pelas partes. A atividade do juiz consiste na verificação da veracidade ou da falsidade dos fatos principais (ou probandum) alegados pelas partes, bem como na tomada de uma ‘escolha decisória’, dentre as soluções (ou versões) possíveis em relação à fattispecie aplicável ao caso concreto, devendo adotar aquela que, sendo mais persuasiva, consista no melhor fundamento racional da decisão (CAMBI, 2001, p. 49-50).

 

Diante dessa necessidade de sujeitar a produção de prova, dentro do processo judicial, a um determinado regime jurídico, observou a evolução da Ciência Processual, o aparecimento e desenvolvimento de três distintos sistemas, quais sejam o sistema da prova legal ou positivo; sistema da livre convicção; e, finalmente, sistema da persuasão racional.

 

O primeiro sistema surgido, denominado sistema positivo ou da prova legal, tem como princípio que as regras legais estabelecem os casos em que o juiz deve considerar provado ou não um fato, excluindo-lhe todo poder de deliberar segundo a convicção que as provas lhe transmitam (SANTOS, 1986, p. 12-13).

 

Em total oposição a este regime encontra-se o sistema da livre convicção, mediante o qual o juiz é soberanamente livre quanto à indagação da verdade e apreciação das provas:

 

a verdade jurídica é a formada na consciência do juiz, que não é, para isso, vinculado a qualquer regra legal, quer no tocante à espécie de provas, quer no tocante à sua avaliação. A convicção decorre não das provas, ou melhor, não só das provas colhidas, mas também do conhecimento pessoal, das suas impressões pessoais, e à vista desta lhe é lícito repelir qualquer ou todas as demais provas. Além do que não está obrigado a dar os motivos em que funda a sua convicção. (SANTOS, 1986, p. 13).

 

Efetuando uma espécie de síntese destes dois regimes, captando o que de melhor possuem um e outro, criou-se o terceiro sistema, conhecido como persuasão racional ou convencimento racional.

 

Na lição de Amaral Santos (1986, p. 13-14), conforme esse sistema, o juiz, não obstante apreciar as provas livremente, não segue as suas impressões pessoais, mas tira a sua convicção das provas produzidas, ponderando sobre a qualidade e a vis probandi destas; a convicção está na consciência formada pelas provas, não arbitrárias e sem peias, e sim condicionada a regras jurídicas, a regras de lógica jurídica, a regras de experiência, tanto que o juiz deve mencionar na sentença os motivos que a formaram.

 

Dessa lição do ilustre processualista verifica-se que, mediante o sistema da persuasão racional do julgador, o juiz vincula-se, no momento de proferir sua decisão, a uma série de fatores inerentes à prova.

 

O nosso Código de Processo Civil (CPC) adota, indubitavelmente, o sistema da persuasão racional (SANTOS, 1986, p. 17). Entretanto, ao passo em que a legislação processual previdenciária sobrevaloriza apenas um desses elementos apontados (regras legais de prova), em detrimento de todos os outros, tem-se que o que ocorre é verdadeira equiparação, por obra do legislador, do nosso sistema processual ao já superado sistema da prova legal, o que consiste em inegável retrocesso.

 

Ao dispor o art. 131 do CPC que “o juiz apreciará livremente a prova”,( “A avaliação da prova material está submetida ao princípio da livre convicção motivada”, TRF da 3ª Região, AC 1999.03.99.086635-4, 1ª Turma, Rel. Juiz Fed. Conv. Santoro Facchini, j. 02.09.2002, DJU 06.12.2002, p. 355. No mesmo sentido, e da mesma Corte: “No processo judicial vige o princípio da livre apreciação e valoração das provas, sendo a testemunhal apta à comprovação do tempo de serviço para fins previdenciários”. AC 1999.03.99.050301-4, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. Célio Benevides, j. 26.10.1999, DJ 23.03.2000, p. 383; “Descabe a fixação de quais as provas a serem produzidas para efeito de comprovação de determinadas condições legais para a aquisição do benefício previdenciário, uma vez que o sistema processual brasileiro adotou o princípio do livre convencimento motivado”, AC 94.03.067700-7, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. Souza Pires, j. 07.03.1995, DJ 26.04.1995, p. 24.233)  não se quer ter em mente que a legislação abre possibilidade do arbítrio pleno do julgador. De fato, a doutrina coloca que a apreciação da prova é livre, mas condicionada ao respeito às condições impostas pela lei (SANTOS, 1986, p. 15).

 

Eduardo Cambi (2001, p. 70) ressalta que

 

a impossibilidade de obter a verdade absoluta não deve implicar a exclusão da busca da verdade entre os objetivos do processo. Como, através do processo, pode-se dar conta de um conhecimento parcial, não total, pode-se buscar critérios racionais e relativos para a verdade ser concretamente acertada em juízo, pois, conclui, nenhuma decisão judicial seria justa se estivesse fundada em um acertamento errado dos fatos em que se baseia; [...] a justiça da decisão pressupõe que os fatos da causa sejam estabelecidos pelo juiz de modo verdadeiro.

 

Prossegue o autor, afirmando que

 

deve-se buscar, então, a melhor verdade possível de se obter, com base nas provas constitucionalmente admissíveis e relevantes que podem ser produzidas, porque quanto mais abrangente é a investigação dos fatos melhor é o seu conhecimento e, por conseguinte, mais justa pode ser a decisão que versa sobre esses fatos, [...] a margem de aproximação da verdade varia de acordo com os meios de prova trazidos pelas partes e dos poderes instrutórios de que o juiz dispõe para formar a sua convicção. (CAMBI, 2001, p. 70-71).

 

A prova testemunhal, em nosso sistema processual civil, encontra-se regulamentada pelo disposto nos arts. 400 a 419 do CPC, aplicando-se tais regras gerais a todos os ramos do processo, inclusive o processo judicial previdenciário.

 

Prova testemunhal, segundo a definição de Amaral Santos (1986, p. 242-243), é a “fornecida por pessoa capaz e estranha ao feito, chamada a juízo para depor o que sabe sobre o fato letigioso.”

 

Especificamente em termos de legislação previdenciária, o art. 55 da Lei 8.213/1991 veda a concessão de benefício previdenciário mediante a apresentação de prova exclusivamente testemunhal, exigindo, ao menos, o início de prova material por escrito.

 

Os nossos tribunais, entretanto, já têm reconhecido a possibilidade da prova exclusivamente testemunhal para comprovação de tempo de serviço, para fins previdenciários.( “A exigência de prova escrita, com relação aos rurícolas, deve ser abrandada, sobretudo quando a alegação da parte vem respaldada por depoimentos coerentes, firmados por pessoas idôneas, e o réu, presente a todos os atos, não refutou a prova apresentada”, TRF da 3ª Região, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. Célio Benevides, j. 03.06.1997, DJ 25.06.1997, p. 48.227. Da mesma Corte: AC 1999.61.12.001985-9, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. Aricê Amaral, j. 10.04.2001, DJU 13.06.2001, p. 291. Do TRF da 5ª Região: AC 97.05.037605-0, 1ª Turma, Rel. Des. Fed. Castro Meira, j. 09.12.1999, DJ 11.02.2000, p. 422).

 

Fundamenta-se, dentre outros argumentos, a admissibilidade da prova exclusivamente testemunhal na prerrogativa judicial da livre convicção ou da livre apreciação da prova, constante do art. 131 do CPC: “Os depoimentos testemunhais, que revelam o período trabalhado pelo autor na condição de rurícola, permitem que o julgador, aplicando o princípio da livre convicção, forme seu juízo quanto ao cabimento do direito pleiteado, sendo dispensável para tanto o início de prova material.”( TRF da 3ª Região, AC 95.03.014921-5, 5ª Turma, Rela. Desa. Fed. Suzana Camargo, j. 24.02.1997, DJ 22.07.1997, p. 55.908. No mesmo sentido, do TRF da 5ª Região: Embargos Infringentes em AC 5150439-CE, Pleno, Rel. Des. Fed. Arakem Mariz, j. 31.05.2000, DJ 11.08.2000, p. 418).

 

Igualmente já restou reconhecido que a prova testemunhal, nesses casos, é exigível justamente em função do princípio do devido processo legal, que determina a livre apreciação da prova pelo magistrado condutor do processo: “O princípio do devido processo legal pressupõe um juiz imparcial e independente, que haure sua convicção dos elementos de prova produzidos no curso do processo. O art. 5º, inc. LVI, da CF admite quaisquer provas, desde que não obtidas por meios ilícitos. Assim, a prova testemunhal não pode ter sua eficácia limitada por não vir acompanhada de início da documental, sob pena de cercear-se o poder do juiz, relativamente à busca da verdade e sua convicção quanto a ela.”( TRF da 3ª Região, AC 2000.03.99.046646-5, 5ª Turma, Rel. Des. Fed. André Nabarrete, j. 15.10.2002, DJU 10.12.2002, p. 467).

 

A aceitação e mesmo a sobrevalorização da prova exclusivamente testemunhal não devem ocorrer apenas em razão de ordem meramente processual ou procedimental, ligada ao princípio do devido processo legal procedimental. O aspecto substantivo do postulado, que lhe é superior, decerto, impõe a proteção efetiva ao próprio núcleo dos direitos fundamentais.

 

O direito a prova é uma conquista do Estado Democrático de Direito que pretende aproximar os consumidores da justiça dos órgãos estatais responsáveis pela tutela jurisdicional dos direitos. Visa assegurar a possibilidade de as partes se valerem de todos os meios de prova que se revelam idôneos e úteis para demonstrar a verdade ou falsidade dos fatos alegados e que sirvam como suporte para as suas respectivas pretensões e defesas. Compreende, também, a proibição ao legislador infraconstitucional de colocar obstáculos não razoáveis que impeçam ou dificultem a utilização das provas dos direitos buscados em juízo (CAMBI, 2001, p. 45-45).

 

De resto, sublinhe-se que o interessado tem o direito de acompanhar a instrução processual mais do que indicar provas a serem produzidas, o interessado tem o direito de acompanhar, passo a passo, a instrução processual, sob pena de cerceamento de defesa.

 

5.3 Contraditório e ampla defesa como princípio jurídico unificado: o amplo contraditório.

 

Como preceitos bastante próximos, doutrina abalizada não raras vezes procura fundir os princípios do contraditório e da ampla defesa em um só (VELLOSO, 1997, p. 229). Lúcia Valle Figueiredo (2000, p. 410-411), por exemplo, emprega a expressão “amplo contraditório” para indicar esse conjunto, adequada ao nosso ver. Interessante também, a posição de Nelson Nery Júnior (1996, p. 122-123), ao dizer no âmbito do processo civil:

 

Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis. Os contendores têm direito de deduzir suas pretensões e defesas, realizarem as provas que requereram para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos.

 

Decorrendo diretamente do princípio maior do devido processo legal, explicita-se o princípio constitucional da ampla defesa. Segundo este, ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens, sem que se lhe propicie a produção de ampla defesa, a qual só pode efetivar-se em sua plenitude mediante a participação ativa e contraditória dos sujeitos do processo (TUCCI e TUCCI, 1989, p. 60). A garantia constitucional de ação, pois, implica a existência de tutela jurisdicional adequada à proteção do direito demonstrado, proporcionando todos os meios necessários a que isso ocorra (BEDAQUE, 1999, p. 153).

 

“Ampla defesa” consiste no direito constitucional do administrado de contestar, em favor de si próprio, condutas, imputações, fatos, argumentos ou interpretações que possam atingir a sua esfera jurídica individual, devendo ainda ser assegurados ainda os meios e recursos indispensáveis para o seu exercício (MEDAUAR, 1993, p.111-112).

 

Na ótica de Sérgio Ferraz: Convém insistir em que a garantia constitucional do direito à ampla defesa exige que seja dada ao acusado – ou a qualquer pessoa contra a qual se faça uma irrogação, na qual se estabeleça uma apreciação desfavorável (ainda que implícita), ou que esteja sujeita a alguma espécie de sanção ou restrição de direitos – a possibilidade de apresentação de defesa prévia à decisão administrativa. Sempre que o patrimônio jurídico e moral de alguém puder ser afetado por uma decisão administrativa deve a ele ser proporcionada a possibilidade de exercitar a ampla defesa, que só tem sentido em sua plenitude se for produzida previamente à decisão, para que possa ser conhecida e efetivamente considerada pela autoridade competente para decidir.

 

José Roberto Bedaque (1999, p. 168) conceitua o princípio da ampla defesa conjuntamente com o princípio do contraditório, afirmando que são expressões diferentes para identificar o mesmo fenômeno: a necessidade de o sistema processual infraconstitucional assegurar às partes a possibilidade da mais ampla participação na formação do convencimento do juiz. Isso implica, evidentemente, a produção das provas destinadas à demonstração dos fatos controvertidos. Contraditório efetivo e defesa ampla compreendem o poder conferido à parte de se valer de todos os meios de prova possíveis e adequados à reconstrução dos fatos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos do direito afirmado.

 

O direito à ampla defesa impõe à autoridade o dever de fiel observância das normas processuais e de todos os princípios jurídicos incidentes sobre o processo.

 

A instrução de processo deve ser contraditória. Isso significa que não basta que a Administração Pública, por sua iniciativa e por seus meios, colha os argumentos ou provas que lhe pareçam significativos para a defesa dos interesses do particular. É essencial que ao interessado ou acusado seja dada a possibilidade de produzir suas próprias razões e provas e, mais que isso, que lhe seja dada a possibilidade de examinar e contestar os argumentos, fundamentos e elementos probantes que lhe sejam desfavoráveis.

 

O princípio do contraditório exige um diálogo; a alternância das manifestações das partes interessadas durante a fase introdutória. A decisão final deve fluir da dialética processual, o que significa que todas as razões produzidas devem ser sopesadas, especialmente aquelas apresentadas pro quem esteja sendo acusado, direta ou indiretamente, de algo sancionável (DALLARI, 2001, p. 70-71 e 72).

 

Embora fortemente relacionados, é possível fazer um corte cuidadoso entre esses dois preceitos, no sentido de visualizar o contraditório como pressuposto material necessário para a ampla defesa. Sem que o administrado acusado ou litigante conheça a existência do processo ou mesmo a iminência da medida que o atingirá, defesa alguma é efetivamente viável.

 

A ampla defesa deve ser conseqüência do contraditório, quando o administrado não se resigna do que conheceu. Se, por injunção da própria Administração, o contraditório é inexistente, tardio, efêmero ou insuficiente, fica o processo administrativo maculado de vícios atentatório à própria Lei Maior (FIGUEIREDO, 2000, p. 411). Não há, nestas situações, o amplo contraditório.

 

Também a LFPA, em diversos dispositivos, concedeu maior densidade a esse direito constitucional fundamental. Há seu reconhecimento expresso, no art. 2º, caput, desse diploma legal.

 

6 A EXIGIBILIDADE DO CONTRADITÓRIO NA INVALIDAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

 

6.1 Invalidação, revogação e convalidação

 

Inicialmente, é mister tecer breves comentários acerca da validade e da eficácia dos atos administrativos, delimitando cada qual desses planos. Para tanto, deve-se partir da distinção entre ato e fato jurídico, gênero aquele em que está inserido o ato administrativo.

 

O Direito, como se sabe, visa à ordenação da conduta humana em suas relações de intersubjetividade. A vida em sociedade seria absolutamente impossível sem a interferência do Direito na regulação das condutas, dada a inerência dos conflitos ao espírito humano. É natural que, em virtude da diversidade de interesses, os seres humanos entrem em conflito, cada qual buscando a satisfação de seu interesse próprio. Nesse contexto intervém o Direito, com a finalidade primordial de imprimir aos conflitos de interesses a solução mais adequada.

 

O instrumento por meio do qual o Direito cumpre sua tarefa de regular condutas é exatamente a norma jurídica, que mantém referência semântica com o mundo. Ela fixa a chamada causalidade jurídica, atribuindo efeitos jurídicos a determinados fatos. É, portanto, com a incidência da norma sobre os fatos que se ultrapassa a abstração própria dos textos de direito positivo para alcançar a concretude das relações sociais.

 

O ato jurídico consiste exatamente numa norma jurídica que se destina a reger comportamentos. Como tal, reveste-se de linguagem prescritiva, expressando sempre uma declaração do Estado que tenha em mira regular condutas ou situações.

 

O fato jurídico, por sua vez, é o evento ao qual o Direito empresta conseqüências jurídicas.

 

Determina-se a existência material do ato administrativo pela sua forma revestimento exterior – o conteúdo – a prescrição do nascimento, mudança, reconhecimento ou término de uma relação jurídica administrativa; isso, independentemente de sua conciliação ou não com o regime jurídico-administrativo (FRANÇA, 1999, p. 61; 1998, p. 117). É exigido do conteúdo do ato natureza normativa e seu acatamento pelos administrados (SUNDFELD, 1990, p. 15-52). Sem esses elementos, o provimento administrativo não existe como ato nem como fato.

 

A validade consiste no vínculo que se estabelece entre a norma jurídica e o ordenamento jurídico, “por terem sido obedecidas as condições formais e materiais de sua produção e conseqüente integração no sistema.” (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 205).

 

E como bem ensina Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1994, p. 174):

 

A validade da norma não é uma qualidade intrínseca, isto é, normas não são válidas em si; dependem do contexto, isto é, dependem da relação da norma com as demais normas do contexto. O contexto, como um todo, tem que ser reconhecido como uma relação ou conjunto de relações globais de autoridade. Tecnicamente diríamos então, que a validade de uma norma depende do ordenamento no qual está inserida.

 

Portanto, para que haja o ingresso formal do ato administrativo no regime jurídico-administrativo, é preciso configurar sua existência, ou seja, identificar a forma e o conteúdo. Mas a existência pressupõe o esgotamento de todas as fases necessárias para a formação do ato (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 196).

 

O ato administrativo presume-se válido em virtude da presunção de legitimidade de que gozam – atributo concedido pelo regime jurídico-administrativo quando ingressam formalmente no sistema de direito positivo (MELLO, 2004, p. 297).( Ver STJ, RESP nº 41519-RJ, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro. Sexta Turma, unânime pelo não conhecimento, julgado em 01.03.94, DJ 28.03.94; e TJDF, Ap. Civ. nº 3617.95, Rel. Des. Getúlio Moraes de Oliveira. Segunda Turma Cível, unânime pelo desprovimento, julgado em 26.08.96, DJ 20.11.96). Todo o ato administrativo é idôneo para produzir os seus efeitos jurídicos, até a comprovação definitiva de sua invalidade, podendo haver a sustação provisória dos mesmos enquanto pendente a aferição de sua coerência e afinidade para com o sistema de direito positivo (MEIRELLES, 1995, p. 141).

 

A estabilidade da validade do ato administrativo dependerá de sua efetiva subordinação aos cânones do sistema de direito positivo (FRANÇA, 1998, p. 117). Para o ato jurídico ser materialmente válido no regime jurídico-administrativo, é preciso haver competência, conteúdo lícito, obediência à forma prescrita em lei (quando esta for expressa nesse sentido), bem como, ser precedido de motivo juridicamente aceito e, orientação para a tutela do interesse público. Estes dois últimos elementos são essenciais para a diferenciação do ato jurídico administrativo para o ato jurídico privado (cf. art. 81 do Código Civil). Neste, tais requisitos são inexistentes, pois o motivo e a finalidade do ato jurídico no direito privado são determinados pelas livres e lícitas opções dos particulares, haja vista a força e a presença do princípio da autonomia da vontade (TÁCITO, 1997a, p. 299-300).

 

A perda da validade do ato administrativo pode se dar através da invalidação ou da revogação. É preciso outro ato administrativo, ou norma de hierarquia superior, para se retirar a validade do ato administrativo (FIGUEIREDO, 2000, p. 225-226).

 

Quando o ato administrativo é atentatório aos princípios e regras do ordenamento jurídico, sua permanência no regime jurídico-administrativo torna-se passível de ser contestada e, por conseguinte, fica o ato sujeito à invalidação (FRANÇA, 1998, p. 119).

 

O ato administrativo praticado em desacordo com o ordenamento jurídico é inválido. Inválido, por conseguinte, é o ato administrativo que, ao nascer, afrontou as prescrições jurídicas. É ato que carece de legalidade ou, de forma mais abrangente, que se ressente de defeitos jurídicos. Por conter ditos vícios ou defeitos, deve ser extinto. Sua extinção, por essa razão, nada tem que ver com sua conveniência ou oportunidade. Sobre ser desejada, a invalidação alcança o ato viciado no seu nascedouro. À vista disso, pode-se conceituar a invalidação como sendo a retirada retroativa, parcial ou total, de um ato administrativo, praticado em desconformidade com o ordenamento jurídico, por outro ato administrativo. É também chamada de anulação. Embora seja assim, é certo dizer que esse poder da Administração Pública não é absoluto. Não basta para praticá-lo que o ato seja inválido. Com efeito, para que a invalidação seja legal, o ato invalidando deve ser ilegal, ter causado um dano à Administração Pública sua emitente ou a terceiro, ser inconvalidável e não ter servido de fundamento para a prática de ato em outro plano de competência. Ademais, a invalidação, como regra, exige o devido procedimento administrativo e a garantia ao beneficiário do ato invalidando do amplo direito de defesa (GASPARINI, 2007, p. 112-113).

 

O ato administrativo é juridicamente eficaz quando, juridicizando o fato, possui idoneidade para determinar, formar e regular as situações jurídicas individuais que são objeto do regime jurídico-administrativo. Tal aptidão decorre da inexistência de entraves para que o ato produza seus efeitos típicos (termo inicial, condição suspensiva ou ato controlador de outra autoridade), como bem leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 273). Mas dentro de um sentido lógico-formal, já que do ponto-de-vista sociológico, há eficácia quando há a conformação da conduta ao preceito normativo (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 200-202).

 

A perfeição do ato administrativo não prescinde da eficácia jurídica, uma vez, que esta é pressuposto para a geração de direitos subjetivos e para criar situações jurídicas subjetivas (MEIRELLES, 1995, p. 142-143). Perfeito o ato administrativo, ele se torna inatingível pela lei, no que concerne aos direitos subjetivos por ele gerados para os administrados que alcançarem o padrão de direito adquirido, por força da Constituição Federal vigente.

 

Para que o ato administrativo possa ser considerado um ato jurídico perfeito, é preciso que sua eficácia jurídica seja suficiente para permitir o regular e válido ingresso de um direito subjetivo na esfera jurídica do administrado ou permitir a consolidação válida de uma dada situação jurídica (ato consumado). Há respeitada doutrina (MELLO, 2004, p. 272-273; FIGUEIREDO, 2000, p. 155-157), que identifica a perfeição do ato administrativo quando encerrado seu processo de formação. Esta posição, a nosso ver, não está conciliada com nosso direito positivo.( Ver CF, art. 5º XXXVI; e Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º).

 

O ato administrativo não deve ser confundido com os atos materiais inerentes à sua execução, e nem estes devem enquadrar-se nessa categoria (FRANÇA, 1998, p 119). A ação material da administração é fato jurídico-administrativo, juridicizado pela norma jurídica denominada ato jurídico-administrativo. O excesso ou insuficiência na execução do ato administrativo não induz a sua invalidade, mas sim a responsabilização do Estado pelos danos oriundos da falha da Administração nesse sentido. Nem sempre após um ato administrativo válido, segue-se uma conduta lícita.

 

A invalidação não se confunde com a revogação. Na revogação, há o desfazimento total ou parcial do ato administrativo, pela própria Administração, por motivos de conveniência e oportunidade (FAGUNDES, 1991, p. 57). Embora válido e eficaz,( Ou válido, eficaz e perfeito, caso se trate de revogação parcial do ato administrativo, já que houve a geração de direitos subjetivos) a manutenção do ato administrativo se torna politicamente insustentável, em face da sensível alteração que as circunstâncias do caso concreto sofreram, transformando o que, no momento da sua expedição, era conveniente e oportuno (FRANÇA, 1998, p. 119). Revogado o ato administrativo, os efeitos já produzidos são respeitados, cessando-se os efeitos futuros.( Recorrendo-se mais uma vez a Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1994, p. 203), a eficácia jurídica não se revoga; anula-se).

 

Embora também implique na retirada do ato administrativo, diferenciam-se quanto ao fundamento da expulsão do mesmo sistema (TÁCITO, 1997b, p. 1002). A revogação tem um regime jurídico que lhe é peculiar, não permitindo, ao nosso ver, enquadrá-lo como um meio de restauração da juridicidade, mas sim como um modo de melhor adequação político-social do regime jurídico-administrativo às mudanças da realidade social.

 

Enquanto o emprego da invalidação busca diretamente a manutenção da integridade do regime jurídico-administrativo, o emprego da revogação concede nova orientação para o regime jurídico-administrativo no caso concreto, em virtude da mudança do contexto político e social, observados os cânones jurídicos.

 

O poder de revogar, de que é dotada a Administração, baseia-se na sua competência para avaliar o interesse público ou ponderar os interesses presentes numa determinada situação. A própria autoridade pode, assim, de modo espontâneo ou por provocação, reavaliar os aspectos de conveniência e oportunidade de uma decisão e concluir pelo seu desfazimento; vários fatores podem levar à revogação: mudança de circunstâncias, advento de novos fatos, reação contrária da população, engano inicial na apreciação dos fatos (MEDAUAR, 2004, p. 187).

 

A revogação do ato administrativo não deixa de ter natureza discricionária, mas o emprego dessa prerrogativa não se faz sem o respeito aos limites impostos pelo regime jurídico-administrativo (MARQUES, 1991, p. 299-300; MELLO, 2004, p. 327-328; MEIRELLES, 1995, p. 185-186).( Sobre a exigibilidade do devido processo legal administrativo no exercício da revogação, ver STJ, MS nº 5431-DF, Rel. Min. Milton Luiz Pereira. Primeira Turma, maioria pela concessão parcial da segurança, julgado em 23.09.98, DJ 17.05.99).  As situações jurídicas constituídas sob o regime do ato revogado devem ser mantidas.

 

Ao contrário da revogação, que é exclusiva da Administração, a invalidação pode se dar por via judicial ou por via administrativa.

 

O Supremo Tribunal Federal, ao editar as Súmulas nº 346 e nº 473, reconheceu à Administração a faculdade de anular os seus próprios atos quando constata vícios que os tornem ilegais.

 

De seu turno, a Lei nº 9.784/1999 conferiu especial relevo à autotutela administrativa, dispondo, na trilha das mencionas súmulas, em seu art. 53: “A administração deve anular seus próprios atos quando eivados de vícios de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.”

 

Deveras, a Súmula nº 473 – e, hoje, também o art. 53 da Lei nº 9.784/1999 – não deve ser utilizada como instrumento autoritário, capaz de desconstituir situações sem conferir aos interessados as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Não se pode admitir que a Administração invalide atos – os quais, vale lembrar, gozam de presunção de legitimidade – sem conceder àqueles que serão atingidos pela decisão administrativa a chance de sustentar, no curso do devido processo legal, que se trata de atos legítimos.

 

Essa linha de raciocínio tem prevalecido reiteradamente nos Tribunais pátrios, para os quais afigura-se inviável a anulação de ato administrativo sem a instauração do competente procedimento administrativo, que garanta ao interessado o contraditório e a ampla defesa.

 

Este poder de autotutela não pode, contudo, a despeito do primado da legalidade, afastar as garantias constitucionais, conforme enfatizou o Ministro Marco Aurélio no julgamento do Recurso Extraordinário nº 158.543-9-RS.( STF – RE nº 158.543-9-RS, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 30.08.94, DJU 06.10.95, p. 33.135).

 

Há posicionamento doutrinário, anterior á LFPA, entendendo que a invalidação pela Administração possui natureza discricionária (FAGUNDES, 1991, p. 61-62).( Mesmo assim, tal discricionariedade não existiria para os órgãos judiciários (cf. MARQUES, José Frederico, 1991, p. 301).

 

Assim não entende Carlos Ari Sundfeld (1990, p. 84-85), segundo o qual “a Administração tem o dever de restaurar a legalidade ferida, não possuindo qualquer poder discricionário para optar por não restaurá-la.” Haveria, para ele, discricionariedade apenas quanto à escolha a forma: invalidação e convalidação.( Cf. LFPA, art. 55).

 

Celso Antônio de Mello (2004, p. 339-341) e Weida Zancaner (1993, p. 55-59) entendem que não há discrição para a escolha do modo de recomposição da juridicidade (excetuando-se o caso do ato discricionário com vício de competência). Deve a administração pública convalidar o ato administrativo sempre que possível, em obediência aos princípios da boa fé e da segurança jurídica. Se o ato administrativo não pode ser substituído por outro que supra os seus defeitos, há então o dever de invalidar. Caso não haja quebra do interesse público ou lesão a direito de terceiro, e sendo a falha sanável, a saída deve ser a convalidação do ato administrativo.

 

Convalidação deve ser entendida como a repetição do ato administrativo viciado quando pode ser validamente aceito no regime jurídico administrativo com a correção do defeito, sem maiores prejuízos para o sistema, com efeitos retroativos (MELLO, 2004, p. 234). Enquanto na invalidação, há a desconstituição dos efeitos produzidos no passado, procurando-se repor a situação anterior ao surgimento do ato viciado, na convalidação, elimina-se o ato viciado pela sua substituição por outro, que “herda seus efeitos, tornando-os como seus e fazendo-os sobreviver.” (SUNDFELD, 1990, p. 51).

 

A possibilidade da convalidação do ato administrativo como modo de restauração da juridicidade não tinha aceitação pacífica na doutrina. Hely Lopes Meirelles (1995, p. 156-157) rejeitava-a “pela impossibilidade de preponderar o interesse privado sobre o público e não ser admissível a manutenção de atos ilegais, ainda que assim o desejam as partes, porque a isto se opõe a exigência da legalidade administrativa.”

 

O regime jurídico-administrativo acolheu a convalidação. Não raras vezes, a invalidação completa do ato provoca muito mais transtornos para as relações entre Administração e administrados, do que o seu saneamento. A convalidação não deixa de ser um modo de tutela juridicamente legítimo do próprio interesse público (ZANCANER, 1993, p. 59). Mas o seu emprego não deve ser indiscriminado. Aliás, o art. 55 da LFPA estabelece o seguinte: “Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão a interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria administração.”

 

Por conseguinte, constatado o vício, o ato administrativo pode ser invalidável ou convalidável (FRANÇA, 1998, p. 123). Se há vício, e este é sanável sem prejuízo ao interesse público ou a direito subjetivo de terceiro, deve haver a convalidação. Se o vício não pode ser reparado, deve a Administração invalidá-lo.

 

Releva realçar que o dever de convalidar os atos viciados – sempre que possível, é óbvio – está íntima e indiscutivelmente relacionado ao princípio da segurança jurídica, já que, por intermédio do ato convalidador, os efeitos já produzidos pelo ato viciado são, como dito, preservados.

 

Mas o ato convalidável não deve ser confundido com o “ato anulável” do direito privado. Não vemos espaço para as categorias “atos anuláveis” e “atos inexistentes” (MELLO, 2004, p. 341). Se, por qualquer razão, o ato que pode ser convalidado é submetido à invalidação judicial, o ato é submetido ao mesmo regime do ato invalidável, no direito positivo brasileiro.

 

Outro aspecto também impede a inserção da teoria da nulidade relativa no direito administrativo positivo. A nulidade ocorre quando há exclusivo interesse dos particulares, onde a manutenção do ato fica à discrição das partes envolvidas (GOMES, 1988, p. 491-492). A análise dos atos administrativos envolve necessariamente o interesse público, que não pode ficar submetido ao capricho do administrado (MEIRELLES, 1995, p. 189). Constatado o vício e prejudicada a convalidação, a iniciativa para a provocação do processo de invalidação judicial é amplo, seja qual for sua natureza.

 

O que se chama de “ato inexistente” é, na verdade, um delito cometido por um agente da Administração, ou seja, um fato jurídico, e não um ato administrativo, pois não chega a ingressar no sistema como norma (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 215-217). Somente é relevante para o direito administrativo no que concerne à responsabilização do Estado pelos danos causados aos administrados e ao exercício do poder disciplinar da Administração.

 

Sem a manifestação normativa competente, o ato administrativo portador de vício permanece no sistema. Embora o ato implique em atentado à ordem jurídica, a restauração da juridicidade ferida depende da expedição de outro ato administrativo. A invalidação e a convalidação são meios estabelecidos pelo próprio regime jurídico-administrativo para a eliminação material do vício, preservando a segurança jurídica e a integridade dos princípios que regem essa parcela do sistema de direito positivo. Se assim não fosse, bastaria confiarmos no administrador, e o controle da Administração, por conseguinte, seria algo inútil.

 

Se a Administração não convalida, o ato se torna passível de invalidação pelo Poder Judiciário, se, é claro, este for provocado para fazê-lo. O mesmo serve para a hipótese da administração se abster de invalidar quando deveria tê-lo feito (FRANÇA, 1998, p. 123).

 

6.2 Limites à invalidação administrativa

 

A invalidação tem efeitos ex-tunc (MELLO, 2004, p. 331-332), retirando o ato administrativo do sistema ou desconstituindo as relações jurídicas que foram geradas durante sua permanência no mesmo, conforme a eficácia jurídica do ato. A revogação, por sua vez, tem efeitos ex-nunc, suprimindo o ato ou seus efeitos, respeitando os efeitos transcorridos (MELLO, 2004, p. 326).

 

Quanto ao modo de incidência da invalidação, há as seguintes possibilidades(Recorde o leitor que entendemos os atos administrativos como normas individuais e concretas).

 

a) Se o ato administrativo é ineficaz, a invalidação terá incidência direta no próprio ato, retirando-o do regime jurídico-administrativo e, por conseguinte, eliminando a possibilidade de implementação dos efeitos que adviriam do ato viciado;( “[…] em Direito, ato administrativo significa uma fonte, uma matriz de efeitos jurídicos. Esta fonte que é o ato se confunde com os efeitos dele nascidos. São coisas distintas o produtor (ato) e o produzido (efeitos). Quando se ataca um ato ineficaz, seja ele ato abstrato ou ato concreto, os efeitos previstos ainda não eclodiram [...]. Elimina-se aquela fonte da qual dependia o surgimento de efeitos.” (MELLO, 2004, p. 331)).

 

b) Por fim, se o ato administrativo é eficaz e foi concretizado, a invalidação somente incidirá nos efeitos que ainda remanescem.( Mas uma vez, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 332) é indispensável: “Nestes casos, a invalidação quer eliminar retroativamente o que ainda existe: a relação jurídica. Do ato não há mais cuidar, pois desapareceu com sua aplicação concreta, isto é, a única).”

 

Mas há limites que devem ser observados para o exercício da invalidação administrativa.

 

O art. 54, caput, da LFPA fixa prazo de natureza decadencial – cinco anos contados da prática do ato – para que a Administração exerça sua prerrogativa de invalidação em atos administrativos que acarretarem efeitos favoráveis a administrados de boa fé e, a nosso ver, caso não possa haver a convalidação.

 

Determina ainda a LFPA(Art. 54, § 2º.) que qualquer medida de autoridade administrativa orientada à impugnação à validade do ato tem peso de invalidação.

 

Acolhe expressamente o regime jurídico-administrativo, lição de Weida Zancaner (1993, p. 76-77), que aponta a subordinação da prerrogativa de invalidar à decadência, ou seja, há a sua perda caso não seja exercida dentro do prazo legalmente estabelecido. Havendo a decadência, perece e qualquer medida judicial e administrativa que a Administração possa intentar para invalidar o ato, restando tão-somente a possibilidade de punição do servidor que lhe deu causa (CAHALI, 1979, p. 365).

 

E como bem lembra Lúcia Valle Figueiredo (2000, p. 227): “[...] a invalidação tornar-se-á impossível, por ilegítima, quando se encontre a Administração Pública diante do exaurimento atual de sua competência para agir.”

 

Se a Administração decai dessa prerrogativa, pode o administrado lesado, ou seja, o não beneficiado, recorrer às vias judiciais para pleitear a invalidação do ato ou a responsabilização do Estado pelos danos causados. Entendemos que o prazo prescricional para a invalidação judicial de ato administrativo é o de cinco anos, como prescreve o Dec. nº 20.910/32, art. 1º. Se o ato implicar em lesão à direito real do administrado, considerável parte da doutrina e jurisprudência entendem que a prescrição ocorre consoante o estipulado no art. 177 do Código Civil (dez anos entre presentes, e quinze entre ausentes), em respeito à instituição jurídica da propriedade (MEIRELLES, 1995, p. 626).

 

E se, decorridos cinco anos, havendo comprovação de má fé, a Administração não exerce sua prerrogativa e não há provocação do Poder Judiciário? Pode a Administração invalidar o ato a qualquer tempo? A segurança jurídica é um dos princípios basilares de qualquer sistema de direito positivo.( Cf. LFPA, art. 2º, caput). A saída mais conciliada com tal princípio é, a nosso ver, a de permitir a invalidação administrativa do ato, não desconstituindo os efeitos pretéritos e, indenizando os terceiros de boa fé que ingressaram em situações provocadas pelo ato viciado, após o decurso do lapso temporal citado, pelos danos causados pela restauração da juridicidade. Como bem determina a LFPA(Art. 2º, parágrafo único, XIII) deve a Administração interpretar a norma administrativa da forma que melhor garanta “o fim público a que se dirige”.

 

Quando o ato administrativo portador de vício é invalidado antes que o administrado ingresse na relação jurídica por ele constituída, ou, se o ato é ineficaz, não há nenhuma conseqüência de ordem patrimonial, uma vez que não houve dano concreto (MELLO, 2004, p. 343).

 

Se o administrado tiver atuado em função do ato portador de vício, e a invalidação ocorre após a efetivação da relação jurídica, a comprovação da boa fé e de sua não concorrência para o vício do ato, assegura ao administrado a preservação dos efeitos patrimoniais passados, ou indenização, na pendência de prestação da Administração (MELLO, 2004, p. 343). Do contrário, a desconstituição total dos efeitos do ato invalidado, neste caso, implicaria num paradoxal enriquecimento sem causa, bem como em violação dos princípios da isonomia, moralidade e da proporcionalidade. Até mesmo a invalidação judicial deve observar estes limites.

 

A não proteção dos administrados de boa fé na invalidação do ato administrativo, tanto a administrativa como a judicial, quebra a isonomia por onerar excessivamente o indivíduo em favor da coletividade, produzindo uma equação perversa para quem procurou se sujeitar ao direito positivo. Quebra a moralidade, por ignorar a própria boa fé do administrado, desconsiderando a sua condição de cidadão. E, por fim, quebra a proporcionalidade, por representar um excesso no exercício da prerrogativa de invalidar, pois o interesse público não pode ser concretizado com o total esmagamento do interesse particular, devendo a administração buscar meios mais adequados e menos danosos aos direitos dos administrados. Recorde-se a prescrição da LFPA,( Art. 2º, § 2º, VI) tornando critério obrigatório à Administração a “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. Deve ser o administrado punido e constrangido porque obedeceu à obrigação de lealdade, urbanidade e boa fé, prescrita na LFPA?( Ver art. 4º, II)

 

No caso, não estará havendo convalidação dos efeitos de um ato portador de vício, mas sim a manutenção da juridicidade dos efeitos pretéritos e o impedimento de efeitos futuros, em prol do interesse público, pela invalidação. Ao se recompor a esfera jurídica do administrado de boa fé com uma indenização, reconhece o Estado que seu interesse era juridicamente legítimo, mas por força dos princípios da prevalência do interesse público sobre o interesse privado e da indisponibilidade do interesse público, sua inteira manutenção implicaria em quebra do regime jurídico-administrativo.

 

Se a contraprestação do Poder Público já foi realizada e incurso o administrado em boa fé, deve a Administração preservar os efeitos já transcorridos, não os desconstituindo, a não ser que sua manutenção implique em forte gravame ao interesse público. É um mandamento decorrente do princípio da segurança jurídica.

 

7 CASO CONCRETO (MS nº 24.268/MG)

 

Mandado de Segurança nº 24.268/MG impetrado por pensionista, na condição de beneficiária adotada, contra ato do Tribunal de Contas da União que cancelou “unilateral e sumariamente [...] o pagamento da sua pensão especial concedida há dezoito anos”, ao argumento de que a adoção não restara comprovada “por instrumento jurídico adequado, conforme determinam os arts. 28 e 35 da Lei nº 6.679 de 1979”. Além disso, como está consignado no voto da Ministra Ellen Gracie,

 

entre a data da escritura de adoção, 30.07.84, e a data do óbito do adotante, 07.08.84, decorreu apenas uma semana. Oscar de Moura, bisavô da impetrante, ao adotar e em seguida vier a falecer, aos 83 anos de idade, estava com câncer. As circunstâncias evidenciam a simulação da adoção, com o claro propósito de manutenção da pensão previdenciária. E mais, a adoção foi feita sem a forma prevista em lei e é nula, nos termos dos artigos 83, 130, 145, III, e 146 do Código Civil, não podendo produzir efeitos.

 

A impetrante, na fundamentação da ação, alegou que o ato impugnado era “atentatório contra os direitos à ampla defesa, ao contraditório, ao devido processo legal, ao direito adquirido e à coisa julgada.”

 

O STF, por maioria, concedeu o mandado de segurança por entender ter sido desrespeitado o princípio do contraditório e da ampla defesa. Entretanto, no voto que conduziu a decisão, o Ministro Gilmar Mendes fez estas considerações:

 

Impressiona-me, ademais, o fato de a cassação da pensão ter ocorrido passado 18 anos de sua concessão – e agora já são 20 anos. Não estou seguro de que se possa invocar o art. 54 da Lei nº 9.784, de 1999 [...] – embora tenha sido um dos incentivadores do projeto que resultou na aludida lei – uma vez que, talvez de forma ortodoxa, esse prazo não deve ser computado com efeitos retroativos. Mas afigura-se-me inefável que há um ‘quid´ relacionado com a segurança jurídica que recomenda, no mínimo, maior cautela em caso como dos autos. Se estivéssemos a falar de direito real, certamente já seria invocável a usucapião.

 

Após mencionar pronunciamentos doutrinários sobre a segurança jurídica, assim conclui: É possível que, no caso em apreço, fosse até de se cogitar da aplicação do princípio da segurança jurídica, de forma integral, de modo a impedir o desfazimento do ato. Diante, porém, do pedido formulado e da ´causa petendi´ limito-me aqui a reconhecer a forte plausibilidade jurídica desse fundamento.

 

Nessa decisão, a justificativa da manutenção do ato administrativo inválido repousa, quase sempre, na situação de fato por ele constituída, mas que, apesar da ilegalidade originária, persistiu duradouramente, por vezes sustentada por decisão judicial depois reformada, acabando tal situação de fato, nas circunstâncias mencionadas, por gerar para os destinatários do ato administrativo direitos a permanecerem no gozo das vantagens ilegitimamente outorgadas.

 

Conquanto a conclusão nos pareça incensurável, a fundamentação é, sem nenhuma dúvida, pouco convincente, como situação de fato, nascida da ilegalidade, pode transformar-se em situação de direito, e ainda mais de direito com as características que o habilitam a ser defendido por mandado de segurança.

 

Por certo, no direito privado, encontramos o instituto da usucapião, em que uma situação de fato, a posse, ainda que estabelecida sem justo título e sem boa fé, mas desde que se mantenha mansa e pacífica por determinado lapso de tempo, termina por resultar em aquisição, pelo possuidor, do direito de propriedade. Seria despropositado, porém, à míngua de princípio constitucional ou de disposição legal, tentar estabelecer, no direito público, analogia com aquele instituto do direito privado.

 

A única solução do problema que se apresenta adequada é a que identifica, no ordenamento constitucional, princípio do mesmo nível hierárquico do que o da legalidade, e que com este possa ser ponderado, num balancing test, em face da situação concreta em exame.

 

Nos acórdãos do STF, na MC 2.900-RS, no MS nº 24.268/MG e no MS nº 22.357/DF, todos da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, ao declararem, pela primeira vez na jurisprudência daquela Corte, que a segurança jurídica é um princípio constitucional, como subprincípio do princípio do Estado de Direito (CF, art. 1º), a par de encontrar a correta fundamentação para inúmeros casos decididos no passado – sustentados, a nosso juízo, por insatisfatória argumentação, nos dá a esperança de que abrirá caminha para que, daqui para a frente, se consolide, nos julgados dos tribunais brasileiros, especialmente do Supremo Tribunal Federal, a idéia de que tanto a legalidade como a segurança jurídica são princípios constitucionais que, em face do caso concreto, deverão ser sopesados e ponderados, para definir qual deles fará com que a decisão realize a justiça material.

 

7.1 Súmula Vinculante nº 03, do STF

 

Sessão Plenária da Suprema Corte, dia 30.5.2007, com a palavra a Excelentíssima Senhora Ministra Presidente, Ellen Gracie, in verbis:

 

A SRA. MINISTRA ELLEN GRACIE (PRESIDENTE E RELATORA) – Senhores Ministros, trata-se, nos termos do art. 2º, caput, da Lei nº 11.417/06, de proposta ex offício de edição de enunciado de súmula vinculante com o seguinte teor: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão [...]”.

 

Tal proposta foi aprovada em sua forma original, estabelecendo o Excelso Pretório Federal, em grande avanço, que os processos no Tribunal de Contas da União estão jungidos ao contraditório e a ampla defesa, salvo nos casos de apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão. Trata-se da Súmula Vinculante nº 03, do Supremo Tribunal Federal.( Publicada no DJ, 06/06/2007, p. 1).

 

Isso significa dizer que nos casos em que o Tribunal de Contas consome o registro do ato, não mais se poderá anulá-lo sem a presença do contraditório e da ampla defesa proporcionada ao interessado.

 

A presente súmula vinculante, sacramentadora do entendimento jurisprudencial no Poder Judiciário e das esferas da Administração Pública nacional, nos termos da Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, em seu art. 2º, é mais um avanço do Estado Democrático de Direito inspirado na Constituição Federal de 1988.( Lei nº 11.417/2006, art. 2º:

 

Art. 2º O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista nesta Lei). Inspirado, sobretudo, no princípio do contraditório e da ampla defesa, cuja maior contribuição, inegavelmente, adveio de um dos mais cativantes votos registrados em defesa do tema, de lavra do insigne Ministro Gilmar Mendes, na oportunidade do julgamento do MS nº 24.268/MG.( STF. MS nº 24.268/MG. Relatora: Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 05.02.2004, DJ, 17.09.2004, p. 922).

 

Por razoável período de tempo, o Supremo Tribunal Federal consagrou que em nenhuma hipótese os processos de verificação da legalidade de aposentadoria no Tribunal de Contas da União se jungiam ao contraditório e à ampla defesa. Foi quando, no julgamento do MS nº 24.268/MG, em voto divergente, o insigne Ministro Gilmar Mendes, após exarar indefectível advocacia aos princípios da ampla defesa e do contraditório, atraiu a maioria dos componentes da Corte Suprema para a tese de que, registrado o ato e decorrido razoável interstício de tempo, é necessária a abertura ao contraditório.

 

Considera-se, portanto, o aludido acórdão como um dos mais importantes avanços no entendimento jurisprudencial e doutrinário a respeito do assunto. Importante, inclusive, por ter balizado a enunciação da Súmula Vinculante nº 03.

 

É relevante, pois, o detalhamento do voto vencedor do MS nº 24.268/MG, por conter imprescindível abordagem de dois temas fundamentais:

 

a) as garantias do contraditório e da ampla defesa; e

 

b) o princípio da segurança jurídica face ao princípio da legalidade.

 

7.1.1 Das garantias do contraditório e da ampla defesa

 

Assinala o Ministro Gilmar Mendes:

 

Tenho enfatizado, relativamente ao direito de defesa, que a Constituição de 1988 (art. 5º, LV) ampliou o direito de defesa, assegurando aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

 

[...]

 

Daí, afirma-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos:

 

1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;

 

2) direito de manifestação (Recht auf Ausserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;

 

3) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berucksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefahigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (Cf. Pieroth e Schlink, Grundrechte – Staatsrecht II, Heidelberg, 1998, p. 281; Battis e Gusy, Einfuhrung in Staatsrecht, Heidelberg, 1991 p. 363-364; Ver, também, During/ Assman, in Maunz-Durig, Grundgesetz-Kommentar, Art. 103, vol. IV, n. 85-99).

 

Em síntese, após vasta colação de precedentes e normas afins sobre a matéria, dentre elas a própria Lei nº 9.784/1999,( Art. 2º, caput e incisos VIII e X)  conclui o insigne Ministro que somente pelo aprofundamento nos princípios de defesa na Constituição é possível se entender pela necessidade de sua garantia em qualquer processo. In verbis: “Portanto, esse fundamento – o da não observância do contraditório – afigura-se-me suficiente para concessão da segurança.”

 

De fato, não parece razoável pretender que a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União se sobreponha aos ditames constitucionais, principalmente, quando se trata das garantias fundamentais.

 

Ademais, anulação de ato de concessão de aposentadoria registrado é anulação de ato administrativo com completado fluxo de aperfeiçoamento, o que importa na qualificação do servidor como interessado no processo e em sua decisão, enquanto detentor de direito subjetivo decorrente de ato jurídico perfeito.

 

7.1.2 Do princípio da segurança jurídica face ao princípio da legalidade

 

Em magistral escólio, no entanto, invocou o insigne Ministro Gilmar Mendes os preceitos do princípio da segurança jurídica. Eis um princípio que guarda estreita relação com o princípio da legalidade, mas possui a importante eficácia de dar aos cidadãos a convicção de que determinadas relações ou situações jurídicas não serão modificadas por motivos circunstancias.

 

Dentro da linha de aperfeiçoamento das instituições e de desenvolvimento do espírito democrático, o princípio da segurança jurídica representa essencial garantia para os administrados, em especial, contra mazelas eternas que situam a administração em descompasso com o tempo, no que tange ao cumprimento de obrigações e na prática de atos que lhe competem.

 

Na mesma linha de argumentação, inclusive, o próprio Tribunal de Contas da União já se posicionou quanto à imprescindibilidade da segurança jurídica no Estado Democrático de Direito:

 

Os princípios da segurança jurídica e da legalidade, ínsitos ao Estado democrático de direito, têm, em nosso ordenamento jurídico, status constitucional, não havendo que se falar em prevalência de um sobre o outro. Em verdade, esses dois princípios se complementam, de modo que não há como se conceber o da segurança jurídica dissociado do da legalidade.

 

[...]

 

Os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre seus direitos, posições jurídicas e relações, praticadas ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros previstos ou calculados com base nessas mesmas normas. Estes princípios apontam basicamente para: (1) a proibição de leis retroativas; (2) a inalterabilidade do caso julgado; (3) a tendencial irrevogabilidade de atos administrativos de direitos.

 

Sob esse amparo, no mesmo MS nº 27.268/MG, também declarou o insigne Ministro que cabe a oferta do contraditório, considerando-se razoável prazo de tempo decorreu antes da definição de julgamento pelo TCU, ressaltando que, se não fosse o Poder Judiciário restrito ao pedido formulado pelo impetrante, pela primeira vez naquela Corte, entender-se-ia cabível a própria decadência do direito de rever o ato impugnado pela Administração. In verbis:

 

É possível que, no caso em apreço, fosse até de se cogitar da aplicação do princípio da segurança jurídica, de forma integral, de modo a impedir o desfazimento do ato. Diante, porém, do pedido formulado e da causa petendi limito-me aqui a reconhecer a forte plausibilidade jurídica desse fundamento.

 

Entendo, porém, que se há de deferir a segurança postulada para determinar a observância do princípio do contraditório e da ampla defesa na espécie (CF, art. 5º, LV).

 

Hodiernamente, a possibilidade de expressivo avanço se assenta no voto do Ministro Carlos Ayres Britto, exarado no MS nº 25.116/DF. Nesse decisum discute-se acerca da necessidade de oportunizar o contraditório e a ampla defesa ainda na fase de verificação de legalidade do ato de concessão da aposentadoria, ou seja, antes do registro que contempla o ciclo de realização do ato – isso sob o mesmo amparo do princípio da segurança jurídica.

 

Embora este princípio tenha sido invocado quando do MS nº 24.268/MG, desta vez, ousa Sua Excelência ir mais além. Assevera parecer razoável conferir maior relevância à estabilidade das relações sociais, decorrido razoável prazo de tempo, porquanto a existência do princípio da segurança jurídica e da confiança.

 

Ressalta o insigne Ministro que:

[...]

Em situações que tais, é certo que o ato formal de aposentação é de natureza complexa, por exigir a co-participação igualmente formal de um Tribunal de Contas. Mas não é menos certo que a manifestação desse órgão constitucional de controle externo há de se formalizar em tempo que não desborde das pautas elementares da razoabilidade. Todo o Direito Positivo é permeado por essa preocupação com o tempo enquanto figura jurídica, para que sua prolongada passagem em aberto não opere como fator de séria instabilidade inter-subjetiva ou mesmo intergrupal. Quero dizer: a definição jurídica das relações interpessoais ou mesmo coletivas não pode se perder no infinito.

 

Parte inovadora do voto do referido Ministro é, também, a que discorre sobre a necessidade de estabelecimento de um prazo razoável de duração para a estabilidade dos atos de concessão de aposentadoria.

 

No momento, o referido mandamus aguarda decisão definitiva pelo colegiado do Supremo com concessão de pedido de liminar deferida pelo Ministro Relator. A definição desta ação será de importância acentuada para o Estado, bem como para toda a sociedade.

 

Para o Estado, por mais um avanço ao encontro da verdadeira democracia, entendendo o alcance do processo legal, da ampla defesa e do contraditório a todos os processos, administrativos e judiciais.

 

Para a sociedade, porque terá assegurado seu direito de preservação das relações sociais com prazo razoável de duração, e terão direito ao salutar exercício do contraditório em todos os processos que possam atingir direito próprio.

 

8 CONCLUSÃO

 

O princípio da segurança jurídica, entendido como proteção à confiança, está hoje reconhecido na legislação e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como princípio de valor constitucional, imanente ao princípio do Estado de Direito, e que serve de limite à invalidação, pela Administração Pública, dos seus atos administrativos eivados de ilegalidade ou de inconstitucionalidade. Como princípio de natureza constitucional aplica-se à União Federal, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às entidades que integram as respectivas Administrações Indiretas.

 

No plano da União Federal, a Lei do Processo Administrativo (Lei nº 9.784/99), no seu art. 54, consigna regra, inspirada no princípio da segurança jurídica, que fixa em cinco anos o prazo decadencial para a Administração Pública exercer o direito de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má fé dos beneficiários. Tratando-se de regra, a ponderação entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica já foi feita pelo legislador, competindo ao aplicador apenas verificar se os pressupostos que integram o preceito estão, ou não, concretamente verificados.

 

A investigação do amplo contraditório na invalidação administrativa representa um ponto sensível na compreensão do regime jurídico-administrativo. A interpretação das prerrogativas legalmente concedidas à Administração de modo algum pode sonegar a cognição dos princípios jurídicos que a regem.

 

O amplo contraditório é requisito essencial para a invalidação administrativa, quando o ato invalidável produziu efeito favorável ao administrado. Se o mesmo ingressa de boa fé na órbita de vigência do ato viciado e não concorreu para o seu vício, parece-nos inconcebível que o regime jurídico-administrativo nenhuma garantia lhe conceda para preservá-la.

 

E sem o contraditório, defesa alguma é possível.

 

Fere princípios essenciais do regime jurídico-administrativo invalidação administrativa sem o amplo contraditório. Negar-lhe tal direito seria uma afronta ao preceito constitucional tão caro do devido processo legal administrativo.

 

Com essas considerações, tentamos identificar uma rota possível para que Administração possa navegar na juridicidade e corrigir seus rumos quando necessário, sem entretanto causar constrangimentos ao administrados inteiramente desnecessários para o alcance do interesse público. Quantas situações de indenização poderiam ter sido evitadas pelo Poder Público com medida tão singela e, mesmo tempo, imprescindível para o regular seguimento da ação administrativa.

 

Nada impede ao administrado o imediato recurso ao Poder Judiciário, caso renuncie às vias administrativas. É inafastável o controle judicial da Administração quando ameaça ou lesão a direito individual é argüida junto aos órgãos jurisdicionais. O rol de direitos e garantias instrumentais no âmbito da administração pública federal estão a disposição dos administrados, cabendo-lhe a discrição de exercê-los ou não.

 

O estudo aqui se encerra com a ingênua esperança de que essas linhas, de alguma forma, possam ter contribuído para a discussão sobre a matéria. 

 

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