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Esse tão esquecido "dever"

Por: Raphael Silva Rodrigues

La soberania del Estado encontró sus límites en las reglas morales y políticas de la Justicia y del bien; en la conciencia jurídica del pueblo; en los principios generales del derecho y en la misma ordenación jurídica, y no en la naturaleza, objeto y fines de la actividad del Estado”. (GRIZIOTTI, Benvenuto. Principios de política, derecho y ciencia de la hacienda. 2.ed. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1958. p. 25).
 

Promulgada após longo e tenebroso período de arbítrio, a Constituição Federal de 1988 teve como objetivo principal a reconstrução da cidadania. Apesar dos percalços e dificuldades, é inegável que se constitui em marco exitoso na evolução da sociedade brasileira.
 

Contudo, a noção de cidadania que se consolidou está focada nos direitos a ela inerentes. O brasileiro aprimorou o conhecimento dos seus direitos e desenvolveu a capacidade de lutar, pelas vias institucionais e jurídicas, pelo seu respeito e implementação. E que seja um processo que se aprofunde cada vez mais, tendo em vista que ainda temos grande déficit de respeito aos direitos, principalmente dos menos favorecidos.
 

Mas nesse processo não se conseguiu o mesmo desenvolvimento com relação aos deveres. A absorção do conceito de dever de cidadania e o seu exercício ficou relegado a segundo plano. Grande parte dos brasileiros é bastante atenta e atuante no que se refere aos seus direitos, mas negligente no que se refere ao cumprimento dos seus deveres.
 

O próprio ordenamento jurídico induz a essa situação. Os textos constitucionais contemporâneos colocam os deveres constitucionais à sombra dos    direitos     fundamentais.     Na     generalidade     dos     casos,     o  termo deveres encontra-se ao lado dos direitos fundamentais na epígrafe do título ou capítulo relativo ao que doutrina jurídica costuma denominar de “subconstituição do indivíduo”. Muitas vezes, inclusive, há apenas um dever genérico imposto aos cidadãos ou a previsão dos deveres básicos, como recolher tributos e defesa da nação.
 

Na Carta Constitucional brasileira, o Capítulo I do Título II (que se denomina tão somente “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) tem como título “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. Após prever no caput do artigo 5º que todos são iguais perante a lei, estatui-se no inciso I que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos de seu texto. Aí se encontra a cláusula genérica de previsão do dever constitucional. A análise dos demais 76 incisos que compõem o referido dispositivo constitucional comprova se tratar de extenso rol de direitos individuais e coletivos, sem nenhuma outra menção a qualquer dever atinente aos cidadãos. E nos demais artigos da Constituição existe a previsão de deveres de cidadania, como o de prestar serviço militar ou de votar, mas não com o status e a repercussão dos direitos fundamentais.
 

Esse predomínio dos direitos não pode ter como consequência o individualismo e o egoísmo social. O indivíduo não deve ser compreendido isoladamente, mas, sim, como ser inserido socialmente, ao qual incumbem deveres decorrentes da solidariedade social que lhe é imposta. Ou seja, os direitos fundamentais não são limitados tão somente em uma perspectiva subjetiva pela órbita de liberdade do outro, mas também, e em muitos casos principalmente, pelas exigências sociais e de ordem pública decorrentes do fato de se estar inserido numa sociedade democrática. Essas exigências não se exaurem na problemática dos limites aos direitos do indivíduo, mas dão suporte e autonomia aos direitos fundamentais.


E como se exterioriza essa deficiente concepção dos deveres de cidadania? Na dificuldade ou repúdio no cumprimento das obrigações por parte dos cidadãos. A visão de que o Estado é um inimigo ou espoliador, induz ou erroneamente  legitima  condutas indevidas,  ilegais  e/ou  nocivas socialmente.


Nisso se insere a aceitação de práticas como a sonegação de tributos, o descumprimento de leis trabalhistas, a burla às normas de trânsito e de convivência social e, em termos gerais, a visão do “jeitinho brasileiro” e da busca a todo custo de se levar vantagem.
 

Muitos já devem ter vivido a situação de presenciar pessoas se gabando de burlar o fisco, como, por exemplo, através da fraude à dedução de despesas de saúde, ou de não cumprir obrigações trabalhistas, ou de ter conseguido, através de contatos, benefícios em órgãos públicos. Ou de ouvir o deboche contra o chamado politicamente correto, com a defesa do direito de zombar ou de diminuir outras pessoas por questões de raça, sexo, orientação sexual ou religiosa. A própria máxima de que existem leis que não “pegam” no Brasil é sintomática. Como se a eficácia de uma obrigação legal estivesse vinculada à aceitação pelo cidadão e não da sua força cogente, decorrente do sistema jurídico e do pacto social que o legitima.
 

Outro exemplo dessa situação é o que ocorre quando há alguma tragédia decorrente de descumprimento de normas de conduta ou de cuidado. Em casos como o da Boate Kiss, a sociedade se insurge fortemente contra a negligência do Estado em fiscalizar a atividade privada. Como se o cumprimento das normas pelo particular somente devesse ocorrer quando fiscalizado ou sob o risco de punição. Ora, o dever do particular de cumprir as regras obrigatórias para o desenvolvimento da sua atividade é objetivo, decorre da norma jurídica, e não de haver efetiva fiscalização. Nesses casos, o erro, que deve ser punido, é dos dois envolvidos, o particular que não cumpriu a sua obrigação e o Estado que não fiscaliza eficazmente. Mas não se pode aceitar a visão de que somente se cumpre a norma se houver coação.
 

Em outro plano, a visão negativa dos deveres levou a se repudiar a figura do corrupto, mas a não se ter a mesma rigidez de avaliação com relação ao corruptor. Esse era encarado como alguém que estava “jogando o jogo’, no objetivo de levar vantagem, sendo vítima daquele que se corrompia. Somente recentemente a sociedade vem mudando essa visão, com a própria Justiça atuando de forma inédita contra os corruptores. Também é relevante avanço a Lei n.º 12.846/13 (Lei Anticorrupção), que instituiu sanções para aqueles envolvidos em atos de corrupção, inclusive pessoas jurídicas.


O senso comum de que existe lei que “pegam” e outros que “não pegam” no Brasil, está inserido nesse contexto. Como se o cumprimento das normas fosse uma deliberação pessoal de cada um, mediante a sua própria avaliação de conveniência, e não um pressuposto do dever de cidadania, no contexto do Estado Democrático de Direito.


É um traço cultural da nossa sociedade, que entende o dever de cumprir as normas jurídica como “obrigação” e não como elemento fundamental da cidadania.


Para avaliar essa distinção, buscamos apoio na teoria dos imperativos categóricos e hipotéticos de Immanuel Kant (1). De acordo com a filosofia kantiana, a análise do dever parte, inicialmente, da relação entre este e o bom, na qual a “boa vontade” adquire grande importância. A “boa vontade”, ou “ação boa”, caracteriza-se por ser aquela que se realiza não por sua conformidade ou adequação à consecução de determinados fins, mas, exclusivamente, por ser “boa por si mesma”. Para Kant, a razão, por meio dos chamados “imperativos”, fornece os dados para que o homem proceda no sentido de chegar ao bem moral. Assim, hipotéticos seriam os imperativos que representassem a necessidade prática de uma ação possível como meio de conseguir outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). Categóricos, por sua vez, seriam aqueles que representassem uma ação por si mesma, sem nenhum outro fim que lhe determine objetivamente como necessária. Em mal-acabada síntese: se a ação é boa somente como meio para alguma coisa, então o imperativo que a determina é hipotético. Porém, se a ação é representada como boa em si, isto é, como necessária segundo uma vontade conforme a razão, estar-se-á diante de um imperativo categórico.


Por intermédio dos imperativos, Kant faz a distinção entre dever e obrigação, distinguindo a atuação conforme o dever (donde se poderia tirar o conceito de obrigação) e a atuação pelo dever. Falar-se-á, então, em dever quando a ação é devida pelo seu valor intrínseco e de obrigação quando ela é determinada por força de algo. Enquanto no dever a assunção seria sempre incondicional, no caso da obrigação esta estaria condicionada à consecução de um objetivo.


Ademais, cumpre salientar que a ética moderna é marcada pela obra de Immanuel Kant, que chegou a publicar em 1785 a “Fundamentação da metafísica dos costumes” e em 1788 a “Crítica da razão prática”, obras estas que antecederam a Revolução Francesa (1789). O referido filósofo alemão, por meio da racionalidade, propôs uma ética transcendental, “fundada na razão que investigaria os conceitos metafísicos para construir uma ética com pretensão de validade universal" (2).


Já no âmbito jurídico, essa distinção também se encontra formulada na teoria de Hans Kelsen, segundo a qual as obrigações jurídicas teriam como conteúdo determinada conduta estabelecida pelo ordenamento, estando estreitamente conectadas com a sanção. O sujeito da obrigação jurídica seria, dessa forma, aquele cuja conduta está determinada na obrigação e a quem é imputada a sanção no caso de seu descumprimento.


O positivismo kelseniano não diferencia dever jurídico de obrigação jurídica, derivando ambos do mandamento de uma norma positivada. A diferenciação efetuada é tão somente entre dever jurídico e dever moral.


Segundo Kelsen, o conceito de dever jurídico implica também um “dever ser”. Se alguém está juridicamente obrigado a determinada conduta, isso significa que um órgão “deve” aplicar-lhe uma sanção no caso de se comportar de maneira contrária. O conceito de dever jurídico, porém, difere do conceito de dever moral pelo fato de o primeiro não ser a conduta que a norma “exige”, a conduta que deve ser observada. O dever jurídico seria, pelo contrário, o comportamento por cuja observância o ato antijurídico é evitado, é dizer, a conduta oposta àquela que constitui a condição da sanção (3).


Entretanto, apesar de não negarmos que tanto o dever jurídico quanto a obrigação jurídica se fundamentam primordialmente no comando de uma norma positivada, defendemos uma diferenciação entre os dois conceitos, tendo em vista, por exemplo, os interesses protegidos e o grau de concretude que carregam. (4)
 

Em face dos interesses protegidos, a obrigação jurídica é caracterizada pela exigência de um comportamento específico de um sujeito em face de outro que, por força do ordenamento jurídico, tem a prerrogativa de exigir a sua execução. A obrigação jurídica, portanto, surge sempre em uma relação jurídica específica que se encontra vinculada a um direito subjetivo de um outro sujeito que é parte (ativa) da mesma relação.
 

Quando, de outro lado, se verifica uma situação em que a titularidade do interesse afetado é genérica ou indeterminável de plano, tem-se um dever jurídico. Essa situação se apresenta com mais frequência quando a titularidade do interesse está fixada em um órgão público. Muitas vezes, a relação jurídica com o ente estatal pode se desenvolver sob a ótica de Direito Privado, como uma obrigação jurídica stricto sensu. Em outras ocasiões, contudo, tem-se apenas uma prerrogativa juridicamente assegurada ao ente público, que somente se transforma em obrigação jurídica quando exercitada por este.
 

Um exemplo concreto de dever jurídico, de matiz constitucional, é o dever de recolher tributos, o qual está previsto no Capítulo I do Título VI da Constituição Federal do Brasil, que delega aos entes políticos a capacidade de instituir determinados tributos. Entretanto, a simples previsão constitucional da competência impositiva, por si só, não provoca o surgimento de obrigações tributárias concretas.
 

Agora, apesar de a norma constitucional não produzir diretamente o surgimento de obrigações tributarias, é inegável que a Constituição Federal impõe aos cidadãos um dever: o de contribuir para o sustento dos gastos públicos. Dever este, que, mediante a sua concreção por lei, faz efetivamente surgir relações jurídicas tributárias.
 

Não é por acaso que os textos constitucionais utilizam normalmente o termo dever ao invés do termo obrigação, com o claro objetivo de dar maior força ao conteúdo normativo que consagram, relacionando a este um implícito componente moral. Devido a isso, não se visualiza a existência da previsão de obrigações jurídicas, stricto sensu, dirigidas especificamente aos cidadãos, no corpo das Constituições, sendo que as obrigações previstas constitucionalmente quase sempre se dirigem aos entes estatais. Reside neste ponto um importante critério de diferenciação entre deveres constitucionais e obrigações jurídicas.
 

Mas se faz importante uma ressalva: a concepção do dever de contribuir, como dever de cidadania, não se presta de forma alguma a legitimar abusos ou ilegalidade. Pelo contrário, o conhecimento do fundamento da tributação trabalha em duas frentes: se, de um lado, integra valor ao dever do contribuinte; de outro, dá uma consciência dos seus direitos como cidadão-contribuinte, o que lhe permite detectar e se insurgir contra desmandos ou arbitrariedades, porventura cometidas, no exercício da tributação. Inserido, por excelência, no campo constitucional, o dever tributário se relaciona, efetivamente, com o conjunto de princípios e direitos que caracterizam o constitucionalismo moderno.


Trata-se apenas da exemplificação de um dos deveres fundamentais de cidadania. Deveres estes, que têm feição valorativa específica no Estado Democrático de Direito. Numa análise sucinta, são exigências pertinentes ao bem-estar da sociedade democrática, de acordo com a concepção de que o homem não é um indivíduo isolado, mas, sim, uma pessoa inserida na estrutura social e de quem pode e devem ser exigidas contraprestações sociais. Se o Estado moderno tem, de um lado, a função precípua de prever, proteger e efetivar os direitos fundamentais dos cidadãos, de outro, tem o direito de lhes imputar certos deveres, decorrentes da responsabilidade social de cada um.


Os deveres fundamentais, portanto, são normas veiculadoras de deveres jurídicos do homem e do cidadão, decorrentes de sua posição na estrutura social e do papel que desempenha nela. Albergam em seu conteúdo normativo valores que são imprescindíveis à comunidade, que, por isso, pode exigir de cada indivíduo o seu cumprimento. (5)


E se relacionam com os direitos fundamentais, uma vez que ambos constituem o estatuto constitucional do indivíduo. Superada a concepção individualista da cidadania, impõe-se o reconhecimento do dever de solidariedade social do cidadão. Sua subordinação aos deveres fundamentais não se dá mais como um “ônus” da vida social, mas sim como decorrência imediata de sua posição social e que se encontra vinculada a valores como o respeito à dignidade humana e a solidariedade social. Não só o Estado tem uma posição ativa no Estado Social, com o dever de combater as desigualdades sociais e propiciar a cada cidadão a possibilidade de desenvolver as suas potencialidades, mas também o conjunto dos cidadãos, principalmente os mais bem aquinhoados socialmente, tem de participar na busca desses objetivos.


Ora, não se trata aqui de discurso moralista ou de submissão! Os cidadãos podem e devem avaliar a constitucionalidade/legalidade das obrigações instituídas pelo legislador, e discordando acionar o Judiciário, exercer o seu direito de protesto ou pressionar por mudança por parte do legislador. Mas isso não elide o fato de que precisamos evoluir no que se refere à capacidade de nossa sociedade de respeitar as leis e as práticas de cidadania.


Questões do nosso cotidiano, mas de grande relevância, estão nesse contexto inserido. O respeito aos demais cidadãos, sem nenhuma discriminação de raça, credo, ideologia política ou orientação sexual, por exemplo. O respeito ao espaço de convivência, com o acatamento das normas de trânsito ou de regras de conveniência, como a lei do silêncio após as 22 horas. As consequências do não cumprimento desse tipo de regras são graves e de conhecimento geral. Como o enorme número de acidentes graves de trânsito que ocorrem anualmente; o índice inaceitável de violência contra mulheres, negros e homossexual; e diversos tipos de conflitos decorrentes da dificuldade de convívio social. A sonegação fiscal, por seu turno, implica em retirada de valores importantes para que o Estado cumpra as suas obrigações, no aumento da carga sobre aqueles que cumprem corretamente as suas obrigações, além de induzir a burocratização do sistema fiscal e o incremento das estruturas fiscalizatórias.


Nesse momento relevante da história brasileira, em que se busca atacar efetivamente práticas que a séculos contaminam a relação entre empresas e pessoas com o Estado, deve-se buscar a mudança de mentalidade e de postura dos cidadãos e das pessoas jurídicas, que, encampando plenamente essa condição, cumpram de forma espontânea e consciente seus deveres de cidadania e deveres legais (no caso das pessoas jurídicas), observando as leis e pautando da mesma forma seu relacionamento com os demais e o Estado. Assim, estaremos todos dando a nossa parcela de contribuição para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. E teremos ainda mais legitimidade para exigir do Estado e das autoridades que cumpram todos os deveres que lhe são impostos pela Constituição.


Cf.: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 51 e ss.
2 MARINS, James. Tributação e política, p. 120.
3 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p. 85-86
4 CHUVI, Cristina Pauner. El deber constitucional de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos, p. 36.

5 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos, p. 64.