Damares Medina - Advogada, Pós-graduada em Direito Econômico pela FGV.
Os servidores públicos possuem um limite máximo de vencimentos denominado teto remuneratório. Trata-se de um mecanismo de trava à percepção de vencimentos acima de valores considerados razoáveis, uma medida moralizadora que visa a coibir o excesso no pagamento de salários (remuneração) pelo Estado aos seus servidores.
Em sua redação original, a Constituição de 1988, no inciso XI do seu artigo 37 (1), procurou fixar o limite de razoabilidade na percepção de vencimentos. O teto de remuneração corresponderia aos valores percebidos pelos membros do Congresso Nacional, no caso dos servidores do Poder Legislativo, pelos Ministros de Estado, no caso dos servidores do Poder Executivo, e pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no caso de servidores do Poder Judiciário, sendo expressamente vedada a percepção que qualquer parcela que extrapolasse ao referido limite. O § 1º do art. 39 (2) da Constituição, por sua vez, trazia regra inspirada no princípio da isonomia, que assegurava a percepção de vencimentos iguais para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas, vedando-se, expressamente, a inclusão de vantagens pessoais. Esse plexo normativo apontava para a exclusão das vantagens pessoais do teto remuneratório, como forma de assegurar o princípio da isonomia concretizado no recebimentos das referidas de vantagens de natureza individual. Como exemplo podemos citar os anuênios e quinquênios que, àquela época, buscavam recompensar o servidor pelo tempo de serviço prestado.
A Emenda Constitucional (EC) nº 19/98 (Reforma Administrativa) modificou o teto remuneratório, dando nova redação para o inciso XI do artigo 37 (3) da Constituição. Desde então, o teto passou a corresponder ao subsídio do Ministro do Supremo Tribunal Federal, incluindo em seu cômputo as vantagens pessoais, que passaram a submeter-se ao teto remuneratório. Ainda na Reforma Administrativa, o poder reformador suprimiu a isonomia remuneratória originalmente assegurada no § 1º do artigo 39 da Constituição, introduzindo o sistema meritório de avaliação de desempenho. Paralelamente, a Constituição emendada passou a exigir lei de iniciativa conjunta para a fixação do subsídio do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) (4). O conjunto de alterações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 19/98 (Reforma Administrativa) conferiu uma nova feição ao modelo remuneratório dos servidores públicos, afastando-se do referencial isonômico adotado pela Constituição em sua redação original, passando a calcar-se em um sistema meritório de avaliação de desempenho do servidor público.
A referida lei de iniciativa conjunta dos chefes dos três Poderes da República que passaria a fixar o teto remuneratório jamais foi editada, diante do que se concluiu pela inaplicabilidade do teto na forma prevista pela EC nº 19/98 (5). Segundo o STF, na ausência da lei de iniciativa conjunta, vigeria a redação original do dispositivo constitucional em comento, ao qual o STF conferiu ultratividade normativa. Logo, no esteio do entendimento do Supremo Tribunal Federal, o teto de remuneração, até o advento da EC nº 41/03, correspondia à remuneração de Ministro de Estado, excluindo-se de seu cômputo as vantagens pessoais.
A Emenda Constitucional nº 41/03, ao dar nova redação ao inciso XI do artigo 37 (6) e ao inciso XV do artigo 48 (7) da Constituição, introduziu significativa mudança. O teto remuneratório, no tocante aos servidores públicos federais, continuaria a corresponder ao subsídio do Ministro do STF, incluídas as vantagens pessoais. Contudo, além de não mais exigir-se lei de iniciativa conjunta para a fixação do subsídio no STF, previu-se um teto provisório, em múltiplos esforços constitucionais para materialização do limite remuneratório dos servidores públicos.
Em Sessão Administrativa de 5 de fevereiro de 2004, o Supremo Tribunal Federal definiu o teto provisório, que corresponderia ao vencimento, acrescido da representação mensal e da parcela recebida em razão de tempo de serviço. Àquela época o teto correspondia a R$ 19.115,19 (dezenove mil, cento e quinze reais e dezenove centavos). Nessa mesma assentada, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a gratificação de presença (remuneração devida aos Ministros do STF que atuam junto do Tribunal Superior Eleitoral) não entraria no cômputo do teto de remuneração, tampouco estaria sujeita à sua incidência. A exclusão da gratificação de presença do teto remuneratório encontrava fundamento no fato de que a própria Constituição determinara a acumulação das funções. Logo, a submissão da parcela ao teto implicaria a imposição de um ônus funcional ao juiz sem nenhuma contrapartida remuneratória, uma vedação oblíqua da acumulação preconizada pela Carta Maior. O entendimento preconizado pelo STF vinha lastreado no fato de os ministros já perceberem o máximo remuneratório, uma vez serem o seu subsídio o limite referencial, logo, parcelas pagas em decorrência de acumulações determinadas pela Constituição deveriam constituir um plus imune ao teto.
Esse mesmo raciocínio parece ser adequado à decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Pedido de Providências nº 200810000017418, proposto pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal (SINDJUS/DF), publicada no DJ de 2.1.2009. Com uma diferença: esses servidores estão, ou pelo menos deveriam estar, aquém do limite remuneratório do ministro do STF. Ao propor a alteração da Resolução nº 14/06, o CNJ visa à explicitação de que as verbas recebidas em função da acumulação de cargos constitucionalmente previstas estão sujeitas a um teto remuneratório específico, sendo vedada a soma das duas remunerações para efeitos de incidência do teto de forma única. A Constituição prevê a acumulação de dois cargos de professor, um cargo de professor e outro técnico ou científico e a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas (8).
A decisão do CNJ possui vários desdobramentos. O primeiro deles, e mais imediato, é a sua incidência direta a todos os servidores públicos federais, uma vez que o Texto Constitucional não faz nenhuma distinção entre os servidores dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo para efeitos da forma de incidência do teto remuneratório. O teto remuneratório é uma medida isonômica que visa a assegurar que nenhum servidor receba uma remuneração que ultrapasse os limites constitucionais. Nesse sentido não há de se admitir que servidores de determinado Poder da República sejam privilegiados em detrimento de outros. Todos são iguais perante a lei e, mais ainda, perante a Constituição. Ainda que se admita a constitucionalidade da previsão de tetos remuneratórios diferenciados para as esferas federal, estadual e municipal (tendo o próprio STF unificado o teto do Poder Judiciário em todas as esferas, na ADI nº 3.854, DJ de 29.6.2007) a forma de incidência do mecanismo há de ser a mesma para todos os poderes, sem distinções que ofendam o princípio da isonomia, cláusula pétrea, direito e garantia fundamental.
Contudo, o entendimento segundo o qual as verbas decorrentes de acumulações constitucionalmente previstas e autorizadas estariam submetidas a teto remuneratório específico leva-nos a perquirir acerca da percepção de outras verbas, também em decorrência de autorizações constitucionais. É o caso, por exemplo, das aposentadorias decorrentes de cargos constitucionalmente acumuláveis. Ora, se o servidor pode acumular a remuneração em atividade, por que não poderia acumular os proventos quando da inatividade? O mesmo se dá com relação às pensões, que não poderão ser somadas à eventual remuneração percebida pelo servidor para efeitos da incidência do teto remuneratório.
Por fim, um desdobramento importante da decisão do CNJ, talvez o mais relevante de todos, pode ser o fim do teto remuneratório. A Constituição Federal foi meridianamente clara ao fixar o teto remuneratório que corresponderia ao subsídio do Ministro do STF. Nem mais, nem menos. Foi até excessivamente minuciosa ao prever expressamente que todas as verbas e parcelas percebidas a qualquer título, cumulativamente ou não, sem exceção, estariam incluídas no teto remuneratório. Com esse entendimento, o CNJ aumenta o teto remuneratório dos servidores públicos federais para, até, R$ 49.000,00 (quarenta e nove mil reais), duas vezes o subsídio dos Ministros do STF, em um limite que parece não corresponder ao previsto e querido pela Constituição Federal.
Notas
(1) Inciso XI do artigo 37 da Constituição: "A lei fixará o limite máximo e a relação de valores entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, observados, como limites máximos e no âmbito dos respectivos poderes, os valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, por membros do Congresso Nacional, Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal e seus correspondentes nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, e, nos Municípios, os valores percebidos como remuneração, em espécie, pelo Prefeito;"
(2) § 1º do artigo 39 da Constituição: "A lei assegurará, aos servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho."
(3) Inciso XI do artigo 37 da Constituição, com a redação introduzida pela Emenda Constitucional nº 19/98: "a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal;".
(4) Inciso XV do artigo 48 da Constituição: "fixação do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, por lei de iniciativa conjunta dos Presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal, observado o que dispõem os arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I."
(5) Nesse sentido: STF em Sessão Administrativa de 24.6.1998. O referido entendimento foi ainda reiterado no julgamento da ADI nº 1.898 (Informativo nº 128 do STF), no qual se conclui que o inc. XI do art. 37, com a redação dada pela EC nº 19/98, não era auto-aplicável, carecendo de regulamentação (lei de iniciativa conjunta) para ser aplicado.
(6) Inciso XI do artigo 37 da Constituição com a redação introduzida pela Emenda Constitucional nº 41/03: "a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos;".
(7) Inciso XV do artigo 48 da Constituição com a redação introduzida pela Emenda Constitucional nº 41/03: "fixação do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, observado o que dispõem os arts. 39, § 4º; 150, II; 153, III; e 153, § 2º, I;".
(8) Inciso XVI do artigo 37 da Constituição.