O uso de inteligência artificial pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) na concessão de benefícios previdenciários com a intenção de diminuir a fila de pedidos tem levado a um alto índice de respostas negativas aos segurados, segundo informações do SINSSP (Sindicato dos Trabalhadores do Seguro Social e Previdência Social no Estado de São Paulo).
A medida vem sendo chamada pelos servidores de "indeferimento automático", em alusão à concessão automática de benefícios iniciada pelo instituto em maio de 2018. Nela, o segurado faz a solicitação e, se houver o direito após o "robô" fazer a varredura da situação previdenciária do trabalhador, há a concessão.
Caso não seja possível liberar o benefício por falta de documentos, um funcionário público é acionado e é aberto um procedimento chamado de cumprimento de exigência, no qual o trabalhador precisa enviar a documentação provando o direito. Depois desse processo, há a liberação ou não da renda previdenciária.
Segundo Vilma Ramos, diretora do sindicato, robôs estão sendo utilizados para fazer uma varredura na fila de pedidos e dar uma resposta ao segurado o quanto antes. A preocupação, no entanto, é com o alto índice de indeferimentos, de ao menos 300 mil benefícios negados nos últimos três meses, conforme estatística do sindicato.
A Dataprev (empresa de tecnologia do governo federal) afirma que utiliza um sistema de inteligência artificial capaz de deferir ou indeferir benefícios. Em 2019, o órgão lançou a ferramenta Issac. A empresa diz que não são se trata especificamente de robôs, mas de uma ferramenta que, acoplada ao Meu INSS, faz concessão ou indeferimento de forma automática.
"A partir do número de CPF do cidadão, o sistema consulta toda a vida laboral do requerente e submete as informações à análise para concessão do benefício. São calculados, por exemplo, tempo de contribuição e qualidade de segurado."
Benefícios assistenciais são alvo
A sindicalista afirma que, com o uso de robôs e o aumento das negativas, os segurados mais carentes, que pedem o BCP/Loas (Benefício de Prestação Continuada, da Lei Orgânica de Assistência Social), são os mais prejudicados. Isso porque, segundo Vilma, são os que estão esperando na fila por mais tempo e acabam sendo o alvo da ação da inteligência artificial.
"O gargalo do INSS está nos benefícios assistenciais. No caso desses indeferimentos automáticos, os benefícios que estão sendo mais prejudicados são esses, das pessoas que mais necessitam. Eles vão na fila, verificam quais são aqueles benefícios que estão represados há mais tempo e aí acionam o robô."
Um dos requisitos básicos para ter o BPC é estar no CadÚnico (Cadastro Único) do governo federal. "Se não estiver no CadÚnico, o robô identifica e já nega, sem que seja dada essa orientação ao segurado", diz. Vilma considera que a negativa pode ser indevida, já que não houve análise de servidor para o caso.
Se análise fosse feita por um servidor, por exemplo, o BPC não seria negado imediatamente, caso o funcionário público identificasse outros indícios de que o cidadão atende às regras de pobreza para ter a renda, mas não tem o nome no CadÚnico. Neste caso, a orientação seria para cumprir a exigência de fazer parte do cadastro e levar documento comprovando essa condição, em prazo de até 30 dias.
Em nota, a Dataprev afirma que "o requerimento só é despachado automaticamente quando as informações disponíveis permitem concluir de forma inequívoca pelo deferimento ou indeferimento", dentro das normas legais do INSS, e diz ainda que a "inteligência artificial desenvolvida pela Dataprev não substitui a tomada de decisão de analistas do INSS; apenas faz a triagem dos casos simples".
Os últimos dados do INSS mostram que a fila de pedidos de benefícios atingiu 1,6 milhão em março, 200 mil a menos do que no início do ano. No entanto, informações da Previdência mostram que, em fevereiro, apenas na fila da perícia médica havia mais de um milhão de cidadãos à espera de atendimento. O sindicato diz ainda que, após o início da greve da categoria, a fila chega a dois milhões de pedidos.
Inteligência artificial começou a ser usada há cerca de 20 anos
O uso de inteligência artificial no INSS data da primeira década dos anos 2000, quando, por volta de 2008, o instituto começou a utilizar meios tecnológicos para identificar o direito à aposentadoria por idade. Naquela época, o segurado que atingia a idade mínima e tinha a carência mínima (15 anos de contribuição) recebia uma carta informando que já podia fazer o pedido de aposentadoria.
Em 2018, foi iniciada a concessão automática dos benefícios. Mas, para o sindicato, atualmente a estratégia é outra. "A lógica da concessão automática era reconhecer o direito do segurado. Hoje, não. Hoje, a meta é acabar com o estoque. Faz-se uma varredura no sistema, verifica se tem o direito e, se não tiver, indefere. É o indeferimento automático", afirma Vilma.
Em mensagem enviada ao Congresso com a medida provisória 1.113, que estabelece pente-fino nos benefícios, o governo indica a preocupação com a fila e afirma que automatização é uma forma de tentar reduzi-la.
"A redução do represamento do estoque de benefícios previdenciários tem sido perseguida pelo governo federal desde o início de 2019. A automatização e a digitalização de requerimentos, a modernização de fluxos e rotinas nos processos de trabalho e a contratação por tempo determinado, foram medidas que trouxeram resultados positivos", diz o documento.
Instrução normativa mudou regra para indeferimentos
A instrução normativa 128, de 29 de março deste ano, mudou as regras sobre o indeferimento de benefícios, o que pode prejudicar o segurado e atinge diretamente as negativas feitas por meio de inteligência artificial.
Segundo a IN, quando a solicitação do segurado for negada por falta de documentação indispensável à concessão, não caberá recurso ao CRPS (Conselho Regional de Previdência Social), que poderia reverter a negativa. O pedido, neste caso, é arquivado, e o segurado terá de entrar com nova solicitação, deixando para trás os atrasados a que teria direito.
A advogada Adriane Bramante, presidente do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário), afirma que o segurado que tem um pedido indeferido pelo INSS deve ficar atento e tentar reverter a negativa de qualquer forma. Ela orienta o trabalhador a entrar com o recurso, mesmo que a lei diga que não há o direito.
"Você tem o direito de entrar com o recurso. Se fez um requerimento e não apresentou nenhum elemento que não permita análise do direito deverá ser convocado para a exigência. A lei diz que, se o INSS indeferir por esse motivo, não cabe recurso, mas, na verdade, o INSS não tem competência para dizer se o recurso é cabível ou não, uma vez que o indeferimento cabe ao Conselho de Recursos."
Para Roberto de Carvalho Santos, do Ieprev (Instituto de Estudos Previdenciários), as negativas de benefícios por meio de "robôs" cerceiam ainda mais o direito dos segurados.
"A inteligência artificial tem sido usada para facilitar, um exemplo é no Judiciário. Mas a decisão tomada por um robô sem que isso seja destacado e deixado claro para o cidadão é absurdo sob o ponto de vista da dignidade da pessoa humana. O robô não vai conseguir fazer aquela análise humana da concessão do benefício mais favorável", diz.
Investimento em tecnologia ainda é baixo, diz IBDP
Para Adriane, as falhas no INSS devem ser sanadas com investimento na contratação de servidores, treinamento aos funcionários e ainda mais melhorias na área tecnológica, que apresenta falhas e impede o andamento de requerimentos no órgão.
Segundo o sindicato, há hoje 19,5 mil servidores no órgão, mas seriam necessários ao menos 30 mil para dar conta da demanda represada de pedidos. Vilma aponta ainda que é preciso investir no treinamento de novos contratados, mas diz que não há previsão de concurso.
Os funcionários administrativos do INSS iniciaram uma greve em 23 de março e ainda estão de braços cruzados. Como boa parte segue em home office, a paralisação consiste, neste caso, em não cumprir as metas estabelecidas. Além disso, os funcionários reclamam que o sistema do Meu INSS, usado nas concessões, é falho e provoca ainda mais atrasos.
Levantamento do IBDP mostra que, mesmo com o uso da inteligência artificial, o investimento em tecnologia no INSS é menor se comparado a outros órgãos. O estudo compara os valores destinados à Receita Federal e ao instituto. Mesmo com os cortes de 2022, o orçamento destinado ao fisco está previsto em R$ 1,3 bilhão e, ao INSS, em R$ 453 milhões.
"A reforma da previdência social, aprovada em 2019, agravou os problemas. Novas regras foram criadas, muitas extremamente complexas, e a Dataprev parece não estar conseguindo acompanhar todas as mudanças", diz Emerson Lemes, diretor do IBDP.
"Esses dados dizem muito sobre os problemas enfrentados tanto pelos servidores quanto pelos segurados", afirma.
Por: Cristiane Gercina
Fonte: Folha de São Paulo