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 Reforma da previdência e RPPS: inconstitucionalidade flagrante  

A Emenda Constitucional 103/2019, na esteira de reformas anteriores, trouxe pioras adicionais para muitos dos segurados do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos agentes públicos civis federais, podendo-se listar: redução de remunerações líquidas via aumentos na contribuição previdenciária; novo aumento na idade para aposentadoria, revogando-se regras de transição anteriores; previsão de instituição de contribuições previdenciárias extraordinárias, além das já majoradas; previsão de migração forçada para o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), em caso de extinção do RPPS, seguidas de reduções nas futuras aposentadorias. Essas medidas, entre outras, visariam a controlar o suposto déficit atuarial do RPPS federal [1], apurado em sucessivos anos desde a instituição do seu levantamento.

 

Estas alterações configuram uma verdadeira chamada aos segurados para reduzirem o desequilíbrio atuarial do RPPS. Tal medida encontra fundamento no caráter solidário do sistema, com previsão expressa no caput do artigo 40 [2] da CF/88, com redação dada pelo artigo 1° da EC 41/2003.

 

A previsão de equilíbrio financeiro e atuarial para os regimes próprios de previdência aparece pela primeira vez no ordenamento jurídico com a Lei 9.717 de novembro de 1998. No mês seguinte, entrou em vigor a EC n° 20/98, dando status constitucional a este mecanismo. Nascia, aqui, o RPPS civil federal, com um déficit atuarial inicial estimado já em bilhões em valores da época [3].

 

Seria lícito até afirmar que o RPPS só nasce mesmo em 1998, quando passa a então vigorar a existência de balanço próprio no qual o referido regime projetaria seu resultado atuarial. Antes disso, o RPPS existia apenas como um conjunto de regras sobre as quais pouco se sabia do efeito nas contas públicas, a não ser o fato de que as contribuições não cobriam os benefícios pagos, exigindo-se sempre cobertura da União.

 

Quanto aos conceitos, a diferença simples entre as receitas e despesas previdenciárias do exercício é chamada de resultado financeiro, ao passo que o resultado atuarial, dito de forma bem simplificada, inclui, no cálculo, a diferença entre as futuras despesas e receitas, numa projeção de 75 anos, trazidas a valores presentes.

 

Ocorre que este déficit atuarial inicial carregava toda a história do sistema, isto é, um século ou mais, pode-se dizer, ou desde que se tem notícia de agentes públicos federais recebendo algum tipo de aposentadoria da União. Um déficit que resultou de décadas e mais décadas de benefícios concedidos sem se ter a noção de seu efeito real nas contas públicas, sendo muitos, por mera liberalidade da lei; ou que resultou de períodos marcados por renúncias na cobrança de contribuições [4]. Tudo isso contribuiu, direta ou indiretamente, na formação do primeiro déficit atuarial, levantado em 1998.

 

Logo, se desde os idos tempos tivesse havido, ao longo dos sucessivos governos, a noção de que o sistema deveria se autossustentar, ao lado de uma preocupação com o seu equilíbrio atuarial, não só a União teria economizado recursos, como o primeiro balanço levantado em 1998 não teria apresentado déficit ou, se sim, nunca na proporção encontrada. E este déficit inicial, já gigantesco em valores da época, não teria sido na prática transposto, ano após ano, até os balanços de hoje.

 

Nesta altura, a pergunta que cabe a ser feita é: será que os atuais segurados do RPPS federal devem mesmo pagar essa conta? Devem ser eles chamados a responderem com suas remunerações líquidas, com o valor de suas aposentadorias, com as restrições a direito de pensionistas e, ainda, como maior tempo na ativa, por esse passivo centenário? Ou só podem ser afetados pelos desequilíbrios porventura detectados após o levantamento do primeiro relatório atuarial?

 

Como alguém poderia prever — especialmente quem, por exemplo, ingressou antes de 1998 por concurso no serviço público, atraído pela proposta de previdência diferenciada  — que seria um dia responsabilizado por este passivo desconhecido de outras gerações?

 

A resposta parece óbvia. Não há como presumir um caráter solidário entre os segurados do RPPS para se resgatar um passivo preexistente ao sistema, sobretudo também porque responsabilidade do gênero só emerge expressamente com a EC 41/2003. Aqui jaz a raiz de todo o problema de segurança jurídica que se experimenta com as reformas da previdência: novas reformas tendem sempre a surgir querendo dar conta deste resgate.

 

A verdade é: da forma como as coisas se encontram postas, a União poderia reduzir arbitrariamente hoje todos os benefícios previdenciários pagos e a serem pagos a seus servidores e pensionistas a uma mera fração do devido que, mesmo assim, o dito equilíbrio atuarial não seria alcançado.

 

Isto põe por terra, ao menos no que diz respeito ao RPPS, a afirmação de que as reformas da previdência visam a acabar com privilégios ou a compensar um processo de envelhecimento da população.

 

A verdadeira finalidade das reformas para o RPPS é fazer os atuais segurados deste regime responderem pelo déficit atuarial produto de décadas de má gestão da parte dos sucessivos governos federais. Daqui, inclusive, deriva a engenhosidade com a introdução da progressividade na contribuição previdenciária, convertendo-a numa espécie de imposto: trata-se de um instrumento para mitigar os efeitos deste tipo singular de cobrança, tornando-a politicamente mais palatável.

 

Assim, de forma resumida, a EC 103 é inconstitucional por ter por premissa que os atuais segurados do RPPS estão sujeitos a serem afetados pelo desequilíbrio atuarial de toda a história do regime. Isto está implícito na forma como é apurado o deficit atuarial publicado anualmente pela Secretaria Especial de Regimes Próprios de Previdência Social [5], sem qualquer tipo de ressalva, em relatório o qual respalda, nos termos do previsto no caput do artigo 40 da CF, a necessidade de novas reformas da previdência a partir da EC 20/98. Esta questão é de absoluta relevância e não deve, por isso, deixar de ser levada a conhecimento do Supremo Tribunal Federal.

 

Este problema teria sido equacionado se o déficit atuarial apurado em 1998 — ou em 2003, se entendido que apenas a partir daqui surge o caráter solidário e a possibilidade de chamadas de equilíbrio – tivesse sido zerado por meio do reconhecimento de um crédito contra o Tesouro Nacional e em favor do RPPS. Assim, os segurados, após sofrerem os efeitos da primeira reforma, teriam recebido, em contrapartida, o balanço atuarial do RPPS devidamente equilibrado.

 

Feito este necessário saneamento, os déficits financeiros seriam, ano após ano, abatidos do referido crédito, cujo saldo seria reajustado pelo índice cabível. Só as projeções de desequilíbrio atuarial a partir deste marco temporal, devidamente demonstradas, seriam levadas em consideração para justificar eventuais novas reformas da previdência.

 

Além do reconhecimento do crédito inicial do RPPS com o Tesouro, outros ajustes de evidenciação nos relatórios atuariais deveriam ser feitos, se a intenção fosse realmente os utilizar no futuro para justificar novas reformas da previdência ou cobranças extraordinárias motivadas apenas pela variável de envelhecimento da população.

 

Por exemplo, não se exige equilíbrio atuarial no regime de previdência próprio dos militares [6], pela razão de que esses servidores são transferidos para a inatividade necessariamente mais cedo. Não é viável, pela mesma razão, migrá-los para o Regime de Previdência Complementar (RPC). Assim, o ônus continua sendo arcado pela União sem restrições constitucionais, como no passado também o era no caso dos servidores civis.

 

Este mesmo tratamento, dado ao regime de previdência dos militares, deveria ser parcialmente estendido àquelas carreiras no RPPS civil que se aposentam mais cedo, como policiais federais e professores. Isto é, a União deveria arcar com os valores correspondentes aos anos por conta dos quais estes servidores se aposentarão mais cedo, efetuando transferência do crédito correspondente para o balanço atuarial do RPPS. Do contrário, é exigir dos demais agentes públicos arcarem com esse ônus, o que extrapola o caráter solidário previsto no próprio caput artigo 40 da CF.

 

Em seguida, os ganhos de eficiência da União com automações, resultando em menor necessidade de contratação de agentes públicos federais civis, afetam negativamente o equilíbrio atuarial do RPPS. Neste contexto, convém lembrar que a CF prevê a proteção do trabalhador contra a automação, nos termos da lei. Logo, uma parte da economia da União com pessoal imputável ao aumento da eficiência na administração pública em sentido amplo, isto é, englobando-se os três poderes, deveria ser prevista em lei para ser repassada como mais um crédito ao RPPS.

 

Por fim, eventual criação pós-1998 no serviço público federal de carreiras por meio de transformação de celetistas em estatutários, ou de aproveitamento de já servidores resultando em novos cargos com aumentos substanciais de remuneração [7], também afetam negativamente o equilíbrio atuarial do RPPS. No passado, burlas deste tipo ao concurso público foram uma das grandes responsáveis pela disparada do déficit atuarial histórico. Assim, tais decisões deveriam ser sempre precedidas do estudo do impacto no RPPS e, por conseguinte, no reconhecimento do crédito em favor deste sistema.

 

A menos que o Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade da EC 103, que poderia ser por confisco ou violação ao direito de propriedade, dificilmente qualquer ajuste, como algum destes exemplificados, será implementado. Isto porque significaria reabilitar em parte o RPPS, quando a diretriz política é claramente no sentido de encerrá-lo e de promover o RPC.

 

Além do inconveniente de se reconhecer tais ajustes, é mais fácil para os sucessivos governos sustentar retoricamente o desrespeito aos segurados do RPPS, sobretudo os que se aposentam com remuneração acima do teto do INSS. Taxados de privilegiados e denegridos perante a opinião pública, a ideia é empurrar para estes segurados o déficit pretérito, seja por meio de sucessivas chamadas de equilíbrio atuarial em reformas da previdência, seja por meio de manobras de quebra de paridade, constrangendo-os, assim, a aceitarem, à prestação, duras e injustas perdas, terminando por anuírem, por cansaço moral, com a redução de seus benefícios.

 

Acerca ainda de uma suposta necessidade da última reforma, outro questionamento caberia ser feito: se ela não tivesse sido aprovada, não haveria risco de crescimento descontrolado das despesas do RPPS, de modo a ser necessário cortar outras despesas, sobretudo sociais? Trata-se de um questionamento de ordem pragmática, mas que não deve ser desconsiderado.

 

A verdade é que, na comparação com o Produto Interno Bruto (PIB) e com a arrecadação tributária federal, a fatia do bolo tomada pela despesa com o RPPS civil federal [8] mantém-se  estável, com pouca oscilação, numa série de mais de 20 anos, começando em 1998 e terminando em 2019, ano de aprovação da EC 103. O pior ano da série foi 2003 e, em 2021, esta relação caiu para o seu menor índice percentual. Ou seja, embora não se possa dizer ainda que a situação é confortável, nem de longe há sinais de estarem a expandir-se mais do que as receitas da União. Sendo a conta do déficit sempre controvertida, medidas como esta dão uma visão mais objetiva do risco da despesa do RPPS civil federal para o equilíbrio das contas públicas.

 

Dito tudo isto, resta ainda saber se o Supremo Tribunal Federal chancelará essa cobrança ou se finalmente declarará a inconstitucionalidade das alterações constitucionais de chamada de equilíbrio introduzidas pela EC 103, por absoluta falta de demonstração idônea de déficit atuarial apto a ser suportado pelos atuais segurados do RPPS.

 

[1] O RPPS dos demais entes federativos dependem de reformas próprias.

 

[2] Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o

equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

 

[3] Aqui se diz estimado porque, em que pese a lei prever a elaboração destes relatórios desde 1998, a Secretaria da Previdência de Regimes Próprios não foi capaz de informar de quanto teria sido o déficit atuarial inicial por meio do canal disponibilizado de acesso à informação. Na falta daquele apurado em 1998, o crédito inicial do RPPS federal com o

Tesouro deveria assumir como valor o primeiro deficit atuarial conhecido.

 

[4] Ministério da Previdência Social. O Equilíbrio Financeiro e Atuarial dos RPPS: De Princípio Constitucional a Política Pública de Estado. Coleção Previdência Social. v. 34. 2012. p. 107 a 119.

 

[5] O relatório de avaliação atuarial do RPPS civil da União emitido pela Secretaria Especial de Regimes Próprios de Previdência Social em 2019, ano, portanto, da aprovação da EC 103, encontra-se em:

http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/04/PLDO-2020-anexo-iv-6-avaliacao-atuarial-do-rpps.pdf Acesso em 26.06.2022.

 

[6] Embora seja levantado o resultado atuarial do RPPS dos militares, o equilíbrio atuarial é exigência constitucional apenas para o regime de previdência dos agentes públicos civis, conforme o caput 40 da CF.

 

[7] Políticas deste tipo foram comuns até a CF/88. Após 1998, na esfera federal, tal incidente se torna raro. Por exemplo, a transformação dos antigos Assistentes Jurídicos em Procuradores Federais, sem adentrar o mérito da constitucionalidade da medida, afetou negativamente, em tese, o equilíbrio atuarial do sistema, pois alterou substancialmente as projeções

inciais de aposentadorias e pensões a serem pagas pela União dos agentes públicos antes pertencentes àquela antiga carreira.

 

[8] As despesas com o RPPS foram testadas a partir das despesas do Poder Executivo com aposentadorias e pensões de pessoal da Administração Direta e Autarquias, as quais representam mais de 80% do total. Fonte:

https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/relatorio-resumido-da-execucao-orcamentaria-rreo/2022/4. Acesso em 26.06.2022.

 

Por Allan Marcel Warwar Teixeira

Fonte: Conjur